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BRASIL

Mesmo ameaçados pelo agronegócio, agricultores criam oásis agroflorestal no Pará

Isolamento, falta de energia e incêndios criminosos atrapalham cultivo do Assentamento Irmã Dorothy, em Anapu

Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]

Agência Pública | Texto: Julia Dolce | Edição: Thiago Domenici

Pedaços quebrados de carvão forram a terra de Lindoval Ferreira da Costa, na zona rural de Anapu (PA), nutrindo seu solo e dividindo espaço com a cobertura vegetal de incontáveis espécies. Um desavisado poderia imaginar que sua origem tenha sido uma queimada natural, ou alguma estratégia de uso tradicional do fogo para fertilização da terra. Na verdade, o carvão é a lembrança da madrugada de 24 de fevereiro de 2021, quando Lindoval e sua esposa, Lea, foram acordados com o som de um tiro para o alto e perceberam que sua casa de farinha tinha sido incendiada.



“Ouvi o barulho do tiro e logo em seguida o som das labaredas. Eu quis correr pra ver o que tava acontecendo, mas ela não deixou”, lembra o agricultor, apontando para a esposa. “Ela disse que iam me matar se eu saísse de casa.” O casal permaneceu desperto durante toda a madrugada, escutando o barulho das chamas consumindo seu principal meio de subsistência, construído ao longo de anos de trabalho na terra.

Lindoval na estrutura que restou do incêndio da sua antiga farinheira (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)


Lindoval diz ser o primeiro morador do Lote 96, área da União destinada à reforma agrária e ocupada por famílias de agricultores sem-terra há pelo menos 12 anos. A área, de cerca de 4 mil campos de futebol, é disputada entre os agricultores e o espólio do fazendeiro Antônio Borges Peixoto (falecido em abril de 2022), tendo se tornado, nos últimos anos, o atual epicentro de conflito agrário de Anapu, num dos municípios recordistas em conflitos agrários. De acordo com o Mapa dos Conflitos, uma ferramenta da Agência Pública em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Anapu registrou 177 conflitos entre 2009 e 2021.

O movimento campesino de Anapu denuncia a existência de um “consórcio da morte”, uma organização entre agronegócio e poder público por trás dos conflitos e assassinatos na região. A missionária Dorothy Stang viveu e foi uma das militantes pela reforma agrária assassinadas no município. Sua luta foi homenageada com o nome do projeto de assentamento que destinou o Lote 96, e seu vizinho, 97, à reforma agrária, em um processo administrativo iniciado em novembro de 2021.


Em 28 de junho de 2022, uma portaria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) criou o Projeto de Assentamento Irmã Dorothy Stang, cumprindo decisão da Justiça Federal. Ela foi publicada pela Superintendência Regional do Incra no Oeste do Pará no Diário Oficial da União de 1º de julho de 2022. No entanto, após três dias, a superintendência enviou à presidência do órgão um pedido para tornar a portaria “sem efeito”, alegando “necessidade de qualificar melhor o processo administrativo”.

O trabalho de Dorothy deu forças para Lindoval continuar na terra. “Estamos aqui para honrar o nome de uma pessoa que deu sangue por nós. Tem dia que eu penso em ir embora, mas que covarde sou eu? Uma pessoa sofreu tanto para eu ter um pedacinho de terra e eu vou abandonar? Posso morrer, mas não abandono. Enquanto eu tô vivo tô nesse pedaço de terra aqui, porque eu gosto é da floresta”, afirma.

Entrada da casa de Lindoval com pôster de Dorothy Stang pendurado (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

A floresta plantada pelo próprio agricultor já encheu quase todo o lote de cerca de dez campos de futebol. Ele se mudou do Maranhão para a região do Xingu, no Pará, para buscar emprego na obra de construção da hidrelétrica de Belo Monte, em 2011, mas não conseguiu, porque é analfabeto. Ao procurar terra para plantar,  diz ter sido informado por um servidor do próprio Incra de que poderia viver e produzir no Lote 96 e de que, em algum momento, seria assentado. Quando chegou à área, ela estava completamente tomada por pasto.


Sumaúma foi a primeira árvore plantada pelo agricultor no local (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

Tronco de cajá-manga no lote de Lindoval (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

“A gente plantou tudo. Meu sonho é matar o pasto todinho e plantar. Eu não como capim”, resume Lindoval. Ele percorreu a terra junto à reportagem, mostrando galhos carregados de laranja, dezenas de pés de cupuaçu e cacau, além de cajá, pupunha e limão.

Agrofloresta de Lindoval vista de cima (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

A primeira árvore que o agricultor plantou quando chegou ao local foi uma sumaúma, espécie amazônica presente na cosmologia de muitos povos indígenas, que tem como uma de suas principais características a retenção de água nas raízes de sustentação, que ficam fora da terra, as sapopemas. Acompanhando o crescimento da árvore, que pode atingir até 50 metros de altura, formou-se um brejo que antes não existia no local.

Em outra área do lote, ainda aberta, Lindoval cultiva um consórcio de roça de mandioca, açaí e cupuaçu. Sua principal renda vem das três sacas de farinha que ele produz semanalmente e vende na cidade. Com a ajuda das irmãs Jane Dwyer e Katy Webster, missionárias remanescentes da congregação de Dorothy, Irmãs de Notre Dame, e integrantes da CPT, Lindoval reconstruiu sua farinheira.


Lindoval também planta cacau (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

Isolamento, falta de energia e incêndios criminosos atrapalham cultivo

No entanto, o escoamento da produção de Lindoval e de todos os agricultores do Lote 96 é prejudicado pelas péssimas condições das estradas, que ficam completamente tomadas por água, lama e voçorocas, principalmente no inverno amazônico, época das chuvas, quando a Pública esteve no local. Lindoval chega a carregar nas costas os sacos de 60 kg nos momentos em que o transporte por moto se torna impossível.

As famílias do Lote 96 já se reuniram diversas vezes com a prefeitura de Anapu para pedir a melhoria das estradas, mas seguem sem respostas. Os agricultores ouvidos pela reportagem denunciam que a negligência faz parte de um projeto político para deixá-los ilhados, alimentando os interesses do agronegócio local. Os únicos carros que passam pelos ramais da vicinal da Transamazônica são os traçados 4×4. Mesmo assim, as condições de acesso ficam difíceis. Hoje, as famílias do Lote 96 têm dificuldades para acessar serviços públicos na zona urbana.

Ramal alagado no Lote 96 prejudica transporte dos moradores (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)
Gado da fazenda do finado Antônio Peixoto (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

 

Além dos ataques periódicos que os agricultores sofreram ao longo dos últimos dois anos – não apenas a casa de farinha de Lindoval foi incendiada, mas também casas de outras famílias e a Escola Municipal Paulo Anacleto, que fica dentro do Lote 96 –, o comprometimento do acesso aos direitos básicos também se torna uma arma no conflito agrário. Em novembro de 2022, por exemplo, relatos descrevem que o Lote 96 teve sua energia cortada após mobilização de fazendeiros da região junto à polícia e à Equatorial, empresa de energia.

Escola Rural Paulo Anacleto, incendiada em agosto de 2022 (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

 

As ameaças de morte contra as lideranças do Lote 96 vêm sendo cobertas pela equipe da Pública desde 2021. Em junho de 2022, apurou com exclusividade informações sobre um dos dez pistoleiros que haviam invadido o lote em 11 de maio daquele ano. Armados, os homens se passaram por policiais e queimaram casas, fingindo executar uma suposta reintegração de posse, informação desmentida em despacho expedido pelo juiz Antônio Fernandes de Carvalho Vilar, da Vara Agrária de Altamira.

Resistência agroflorestal

Mesmo diante de constantes ameaças e episódios de violência, as demais famílias do Lote 96, como a de Lindoval, têm cultivado um verdadeiro oásis agroflorestal cercado pelo pasto. No dia 31 de março deste ano, os agricultores participaram 

de uma feira da reforma agrária organizada pelo Incra e pela Secretaria Municipal de Agricultura, Pesca e Abastecimento, atualmente comandada por Romero Batista Medeiros, que, segundo as famílias do Lote 96, em oposição à atuação do restante da gestão municipal, defende a agricultura familiar na região.

Agricultores do Lote 96 na Feira da Reforma Agrária de Anapu (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

 

Agricultores do Lote 96 na Feira da Reforma Agrária de Anapu (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

 

A participação das famílias do Lote 96 na feira foi auxiliada pela CPT e dependeu da caminhonete da Diocese de Xingu-Altamira, dirigida pelo motorista, agrônomo, extensionista rural e professor Dioclécio Lima Barbosa. Entre os participantes, estavam Lindoval e outras famílias entrevistadas pela Pública. 

O casal de idosos Gilson e Lúcia, moradores do Lote 96, levaram parte de sua produção. Eles contam que passaram a vida à procura de terra para plantar e, desde que ocuparam a área de 50 campos de futebol, em 2016, plantam uma variedade tão grande que supre praticamente toda a sua alimentação.

“Tem coqueiros que dão cachos tão pesados que caem no chão, cacau, jaca, amarelão, pimenta-do-reino, cupuaçu, graviola, caju, manga, acerola, abacaxi, laranja, tanja, abacate, bacaba, babaçu, maracujá, amendoim, batata-doce, pimenta-ardósia, capim-santo, mamão, pequi, amora, limão que chega rachá os galhos de tanto que dá”, lista Lúcia. A maior produção do casal é de milho, mandioca e cacau, já com 1.200 pés.

Desde que Lúcia e Gilson ocuparam a área em 2016, eles plantam uma variedade tão grande de alimentos que supre praticamente toda a sua alimentação (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)
Alguns dos alimentos plantados por Lúcia e Gilson, entre eles pimenta, algodão, limão, graviola (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

 

Alguns dos alimentos plantados por Lúcia e Gilson, entre eles pimenta, algodão, limão, graviola (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)
Alguns dos alimentos plantados por Lúcia e Gilson, entre eles pimenta, algodão, limão, graviola (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

“Antes era só capim. Nas fazendas só tem gado. Antigamente a gente andava aqui e não via um pé de mamão, nada. Hoje a gente chega e vê um pássaro comendo mamão e fica até admirado. Não sei nem como os pássaros sobreviviam antes. Arara, as bichas vêm comer aqui, porque não acham os frutos em outro lugar”, conta Gilson.

Para o agricultor, um dos maiores desafios da produção é enfrentar, sem tratores e outros maquinários, a rebrota do capim do antigo pasto. Ele conta que, por esse motivo, ainda não conseguiu trabalhar com produção orgânica e acaba utilizando o agrotóxico Roundup. “Eu roço primeiro, aí vem o broto, aí dou uma batida no veneno, e o resto é na inxada”. Seu desejo, no entanto, é conseguir incentivos para não precisar mais usar o agrotóxico.

A demanda é compartilhada com as demais famílias. Lourival dos Santos Lima, baiano que se criou em Rondon do Pará, vive no Lote 96 desde o início da ocupação, em 2013. “Venho aos trancos e barrancos, pelejando.” Andando pelo terreno, ele e sua esposa, Maria da Conceição Virgínia, mostraram a produção de babaçu, goiaba, tanja, acerola, limão, cacau, maracujá, manga, laranja, açaí, bacuri, além de farinha, feijão e milho. Lourival quer investir mais na produção de cacau, que tem grande demanda nos municípios produtores de chocolate na região.

Maria da Conceição brinca com o neto Enzo em sua produção agroflorestal (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

“Mas, pra gente melhorar as coisas aqui, precisávamos de uma assistência. Eu dependo muito de desmatar capim, que não acaba fácil. Rocei semana passada e olha o tamanho que já tá”, mostra. A compra do maquinário necessário para enfrentar o pasto e aumentar a produção é prejudicada pela insegurança jurídica do Lote 96. “Falta o Incra vir e terminar de legalizar, pra gente ter alguma segurança, conseguir fazer um empréstimo. Com o documento, a gente consegue se movimentar, escrever projetos, arrumar a estrada para escoar a produção”, explica. 

Por enquanto, os agricultores dependem do apoio da CPT. Uma das iniciativas que vêm sendo implementadas no Lote 96 é a construção de viveiros, onde são “clonadas” mudas de cacau, uma tecnologia de reprodução que permite o crescimento mais rápido dos pés. Uma das beneficiadas pelo projeto é a agricultora Vanessa Ferreira Vitorino, que também vive no Lote 96 há 12 anos. Ela mostrou a produção de abóbora, amora, coco, abacate, manga, milho e cacau clonado.

“A produção foi feita toda aqui. O Dioclécio trouxe a cabaça, nós tirou e ensacou. Aí deixa crescer e depois pega o galho de outro cacau produzindo pra fazer o enxerto. Aí a gente planta junto com o milho porque eles se ajudam. Já fiz muita pamonha daqui mesmo dessa terra”, explica a agricultora. Ela conta que a alimentação da sua família vem toda dessa produção. “Na rua, a gente vai mais pra comprar pasta de dente, ou um pacote de bolacha. Não precisa de quase nada. Quem planta colhe, né?”

Quando ela se mudou para o terreno que ocupa, seu filho mais velho, João Victor, era recém-nascido. Desde então, ela teve outra filha, Maria Júlia, que hoje tem 6 anos e estuda na Escola Paulo Anacleto, incendiada em agosto de 2022. “É muito triste, a gente sofre por eles, tão novos e já aprendendo essas coisas. Como as professoras vão ensinar numa área de risco?”, questiona. Após o corte da energia do Lote 96, a família de Vanessa foi uma das sete escolhidas para receber doação de painéis de energia solar. No entanto, a casa ainda não possui internet. Ela revela temer que novos ataques aconteçam e sua família não fique sabendo.

O conflito, porém, não tem intimidado os agricultores. O orgulho ao mostrar sua produção e o reflorestamento que já redesenha o horizonte do Lote 96 são a regra e atraem novos agricultores. José Reinaldo de Vasconcelos, conhecido como Zé do Brega, se mudou com toda a família para a região em 2022, ocupando um terreno de cerca de 30 campos de futebol. Ele construiu uma casa de madeira e já deu início a uma plantação de açaí, milho, mandioca e cacau.

Agricultor José Reinaldo de Vasconcelos começou a plantar há alguns meses em seu lote, até então tomado por pasto (Foto: Julia Dolce/Agência Pública)

A produção ainda em estágio inicial evidencia como a região era desmatada antes da presença dos pequenos agricultores. “Mas já tô melhorando aqui, pros nossos filhos e netos não sofrerem as consequências, e se Deus quiser vai ficar bom e ano que vem vou ter um bocado de coisa pra colher já”, conclui o agricultor. “Bichos, sombra, chuva, tudo vem com a floresta.”

A reportagem entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Anapu para ouvir o outro lado sobre as denúncias de tentativa de isolar os agricultores por meio da negligência nas condições das estradas, mas não obteve resposta até a publicação. 

A Pública entrou em contato também com a assessoria de imprensa do Incra para entender o andamento da criação do Projeto de Assentamento Irmã Dorothy Stang. O órgão informou que foram identificados erros de fluxo e de competência nos autos de criação, referentes ao Comitê de Decisão Regional (CDR), responsável por “autorizar o Superintendente Regional a encaminhar à Administração Central as propostas de decretação de interesse social para fins de reforma agrária”. O Incra informou que o CDR segue trabalhando para corrigir essas inconsistências, “a fim que o ato de criação possa ser convalidado”. 

No entanto, o órgão ressalta que, mesmo com a decisão de ajustar o processo, não chegou a ser publicada outra portaria revogando aquela referente à criação do assentamento, e que, portanto, ela continuaria válida até o presente momento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




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