A polícia foi chamada por um morador porque o vizinho estava ouvindo música em volume além do que era conveniente. Na casa ao lado não havia festa, nenhum fato especial que pudesse justificar [o que não significa aceitar] o comportamento. O volume da música ouvida pelo vizinho perturbava os moradores e a intervenção policial se fez necessária. O bem-estar coletivo vem antes das preferências individuais, argumentava o policial.
Num condomínio de classe média, em outro ponto da cidade, a despeito das regras relativas à boa convivência, um morador exaltado ouvia TV tão alto que era impossível aos vizinhos se concentrarem em qualquer atividade, mesmo as mais simples. O volume da TV era perturbador e foi necessário que o síndico pudesse intervir para ajustar a interação entre os moradores. O bem-estar coletivo vem antes das preferências individuais, argumentava o síndico.
Leves e fáceis de carregar, com volume potente e baixo custo, as caixinhas de som se popularizaram. Ultimamente, há o incômodo fato de que algumas pessoas [poucas são suficientes] levam suas caixas de som para a praia ou parques com o objetivo de ouvir “sua” música preferida enquanto estão em atividade de lazer e descanso. Outras pessoas frequentam os mesmos lugares e não são “convidadas” para a festa.
Naquele ambiente público e coletivo, como praias, praças e parques o espaço é para todos ao mesmo tempo. Cada um pode ocupar um “território” que não é seu, num reino que não é particular. Não há motivo nem direitos sociais para você impor sua preferência para outros. Como o ambiente é público e coletivo, não são os incomodados que devem se retirar, mas os incomodantes que devem se ajustar. Em circunstâncias públicas e coletivas o individualismo e as particularidades não podem vir antes do conjunto dos outros. E basta um se sentir incomodado pela interferência alheia para que o incomodante siga compassos adequados às interações coletivas em ambientes públicos. Ali você não é o “dono do pedaço”.
Algumas cidades já expuseram, em leis, vetos ou limites para uso de caixas de som em ambientes públicos e coletivos. Quando falta cidadania [reconhecimento de que o outro vem antes de mim e regula minhas atividades públicas e coletivas], quando eu me interesso exclusivamente por mim e o individualismo provoca confronto e conflito, quando o egoísmo [minhas preferências] tem erupções narcisistas, é preciso lei para regular a vida social.
A lei serve para organizar nossa vida social, como fundamento filosófico, e para punir os infratores que transgridam seus limites e colocam em “desvios” as regularidades sociais. Na versão de não poder tolerar a intolerância, as mãos pesadas da lei e seu faro canino apresentam, sem muitos contornos, nossa falta de cidadania política.
As silhuetas de nossa cidadania surgem assim, de muitos lugares diferentes. Inclusive no ato de votar. O voto, como a caixa de som, é seu, mas deve ser usado por respeito aos outros. Cidadania!