Ateon atingira mais de cinquenta anos. Tinha hábitos para costurar o início do dia. Como em outras vezes, pegara sua xícara de café e fora degustar o cheiro da manhã na varanda. Sentado, observava as pessoas passarem. Quase sempre os mesmos grupos apressados com conversas ligeiras, enchendo o dia de planos. Outros sozinhos. As mesmas direções, horários repetidos, passos rápidos, objetivos determinados. Tinham aquela conquista a conquistar!
Ateon na mesma cadeira, olhando as mesmas pessoas. Todos modificados pelo tempo. A existência mostra como o tempo passa, o que se fez na correria de viver. Os objetivos se modificaram, as relações mudaram. Depois de certo tempo, o tempo se mostra nos olhos profundos, na pele manchada, na musculatura afrouxada, nas necessidades dos filhos. O tempo continua e as pessoas se passam na temporada da vida com outras angústias, horizontes mais curtos. Alguns amigos e parentes já não circulam nos círculos do tempo. As mudanças operam na resistência física, na formação psíquica, na conduta moral, nos erros firmados em cicatrizes, nos acertos que se diluíram no banho.
Ateon procurava compreender o mundo das pessoas, um pouco das pessoas, um tico de tempo. Adorador da Filosofia vivia a respeitar a dúvida, cultivava a incerteza, pensava sobre os perigos e as glórias vans. Por repente lembrou-se que aquele seria o dia do evento do último dia do ano. De súbito reprogramou os pleitos do dia e das necessidades de celebrar o fim de um ciclo e o início de outro. A vida, na mente das pessoas, precisava ser renovada: os objetivos, as promessas de vida, as emoções da ruptura, a psicologia refeita do cotidiano.
Os pratos noturnos e a recepção por acenos, os desejos frouxos de se ter um novo tempo. Uma emoção lhe tomava o espírito já contagiado pela moral do tempo. Poderia pensar muito, refletir os ensinamentos dos livros à exaustão, mas suas emoções estavam tomadas pela formação de um no tempo que estava prestes a arrematar o passado. Ateon estava diante de uma paródia do tempo frente ao espetáculo de uma orquestra sinfônica extremamente afinada: harmonia em cumprimentos, ritmo nos compassos das horas que estrangulavam o passado, melodia em notas sucessivas para construir os sentidos do futuro.
As partituras estavam postas; os instrumentos afinados durante a última semana; os músicos preparados; a plateia sufocada pelo passado a se libertar para o futuro. Tudo pronto: o espetáculo explodiu em sirenes, estrondos, fogos de artifício, luzes no céu. Salve o manto de luzes e sons do novo tempo.
Dias depois, já com o tempo futuro instalado, Ateon preparou o café e na mesma xícara, na mesma cadeira, na mesma varanda, viu as mesmas pessoas, rumavam ao mesmo destino. Ateon ouvia, em treliças, as mesmas conversas refeitas para um novo ano. O cotidiano estava a perseguir as pessoas, inclusive Ateon. Começara Jano a se manifestar. A renovação tomara seu dia a dia. Mas havia algo de novo na atmosfera: a passado tinha se fossilizado e o futuro se esgarçara ali nos dias a vir.
O mar era o mesmo, o vento era o mesmo, os pássaros eram os mesmos, os cachorros a vagar nas ruas: os mesmos. Mas a vontade de viver se renovara, as conquistas se reorganizaram, o céu abraçou a terra em novo lance sensual... O mundo estava ali para ser reconquistado!