Costumamos tratar os pensamentos por meio de dualidades, comparações. A estrutura de linguagem que usamos para compor nossas ideias são costuradas em muitas linhas por oposicionismos como prática pedagógica e didática para se compreender o mundo: tudo-nada, nunca-sempre, amor-ódio, bem-mal, bom-ruim, vida-morte, corpo-espírito.
Há outros elementos da vida que utilizamos para tentar as infinitudes desejadas. A expressão “amanhã” ou “depois” são formas de eternização das crônicas das pessoas no tempo. “Amanhã” funciona como uma forma de se prolongar na linha da existência, como se ali, logo depois, ainda estivéssemos presentes. Amanhã conquistarei o mundo. Assim me eternizo nas formas da existência em expectativa. Esta espiritualização da vida é fundamental para nossa permanência social. O amanhã somente poderá existir como forma de prolongamento desejado, e quando chegamos no dia de amanhã ele pula para o dia seguinte. O amanhã é uma perseguição pela vida.
Escrevemos nossas biografias pelos nossos comportamentos. O que fizemos e fazemos, o que dissemos e dizemos, o que deixamos de fazer, a correspondência entre dizer e agir, são linhas de nossa biografia. Serão interpretadas pelos outros e dali sairão as críticas. Um escritor é o pior crítico de sua obra. A crítica será sempre ação de terceiros. O que escrevemos traça o caráter, capítulo a capítulo, de nossa trajetória. Mesmo com a nossa ausência física, o que ficará para os outros todos é a memória do que escrevemos como agentes de nosso próprio curso.
Um livro bem escrito precisa de pesquisa sobre o ambiente de sua ocorrência, sobre fatos relevantes, sobre os costumes de uma época, sobre os hábitos alimentares e de higiene. Escrever não é um processo simples de fazer fluir uma ideia que surge inesperadamente e nos provoca uma obra literária. É um ato solitário porque longo. Deixaremos nos outros a memória de nossa trajetória, nosso livro de vida, nossa forma de existir que será lida e interpretada e criticada pelos outros. É nesse movimento de interpretação pelos outros que existimos e somos esticados no amanhã do tempo.
Ainda assim podemos provocar nossa ampliação na biblioteca em mãos e olhos e corações em busca de uma boa leitura. Nosso livro pode ter um capítulo para uma nova série de existências. Podemos ajudar a outros pelo simples ato de escrevermos algumas linhas para deixarmos marcadas nossa forma de existir: podemos doar nossos órgãos!
Por muitas vezes algumas pessoas se encontram fora da margem de segurança ontológica [ramo da filosofia dedicado à natureza do ser e de sua existência], e se localizam no entrementes duvidosos sobre o amanhã. Parte dessas pessoas precisa substituir órgãos para poder continuar sua escrita. O espírito do doador, por certo, estará feliz em poder manter sua memória viva por atos de generosidade, de bondade, de delicadeza, de boa vontade, de harmonia, de paz.
Um bom livro da vida tem, como alegria e desfecho, sua própria eternização em memórias sobre um enredo bem delineado. O capítulo de consagração terá a Doação de Órgãos como forma de solidariedade aos outros todos possíveis e de felicidade pessoal sem fim. Doe-se em órgãos!