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Arete: fogo e voto


Num pequeno país as pessoas foram convencidas a abandonar tudo o que pudesse gerar sentimento de acúmulo, propriedade. Seria isso um pecado que danaria aqueles que se apegassem ao mundo material. Motivados por um líder religioso da Seita Praxis Copema, jogaram todos os seus móveis na rua, em frente às casas, e os queimaram. Suas roupas, medicamentos, louças, perfumes, colares, aparelhos ardiam na fogueira de madeira.

Satisfeitos com sua força de vontade e capitulação, acreditaram que foram elevados na espécie: a partir daquela atitude se puseram como superiores. Nada mais poderia lhes atingir.  Todos os contrários, todos os opositores deveriam ser perseguidos pela deformação que provocariam à espécie. Os divergentes eram, agora, adversários, dopados sociais, idiotas políticos. Deveriam ser combatidos e anulados. O Estado era de guerra.

Arete era uma das militantes da Praxis Copema. Na noite anterior tinha reduzido seus pertences a cinzas. Pela manhã ainda havia a luminosidade de brasas e temperatura elevada. Arete acordara com dores no corpo por ter dormido no chão e se movimentava com desconforto. Como nos dias anteriores, intuitivamente, foi procurar a chaleira, o bule e o coador. Encontrou apenas o pó de café. Não havia mais fogão.

Ali perto, no chão, Arete encontrou um pequeno espelho que fora esquecido. Com o café a seu lado, olhou-se e ficou assustada com o que vira. Já não se reconhecera no reflexo. Havia ali a imagem de um ser mutado. A cabeça tinha dimensões nunca percebidas, os olhos estavam desalinhados, os cabelos viraram uma manta incoerente, a boca já não tinha a orientação do cérebro e ficava num abre e fecha involuntário: grunhia mentiras.

Deparando-se com sua própria existência percebeu que a mentira era uma estória que precisava ser criada durante a fala e que a necessidade de ser repetida comprometia o falante. Entendeu que falar a verdade era narrar um fato ocorrido, e porque a história acontece antes da fala, poderia ser repetida sem grande fardo a carregar. A mentira é sempre uma criação recriada que não está atracada no cais do fato: vagueia na correnteza atingida pelo vento e segue sem direção. Falar a verdade é como um barco com âncoras seguras e amarras resistentes.

Arete é levada a crer que a verdade não pode depender da vontade do observador porque sua existência é anterior ao narrador. A mentira é uma criação durante a fala e depende da vontade e das condições de quem fala. Arete retomou a consciência de realidade e lembrou-se de algumas lições que tivera em sua preparação, em aulas e seminários e livros: um Estadista é levado pelas instituições e é orientado por elas: seus interesses pessoais são guardados para escolher uma roupa para ir ao trabalho. Um Personalista usa as instituições para projetar seus próprios interesses, destrata seus adversários e entra em guerra contra os opositores.

Numa recapitulação de sua vida mais concreta, com dificuldades e virtudes, sorte e preparo, a imagem, outrora distorcida de si mesma, agora se refaz. O que fora salvo não era um acaso, mas sua própria autoconsciência, sua própria capacidade de pensar por si mesma. Agora, não foi o líder que lhe disse o pensamento que ela pensava, que a levou a acreditar que a queima de seus pertences a purificaria.

Arete acordou assustada, suada, cansada! Tivera um delírio? Um pesadelo? Uma hipnose? Estranhou ter um espelho em suas mãos. Guardou-o. Lembrou-se que era dia de votar. Foi até a cabine, cumpriu os requisitos institucionais de identificação, apertou as teclas que indicavam aqueles que a representariam e teve a sensação do dever cumprido. Voltou para casa confiante, e ansiosa pelo resultado que seria divulgado dali a algumas horas. Como nas outras eleições.


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