Final de tarde de domingo, faz calor intenso e o barulho das poucas crianças que ouço na rua de casa me faz lembrar da minha infância. Ah, aquele tempo mágico das férias de verão, das brincadeiras de rodas e de esconde-esconde, das mil histórias contadas e de tantos enredos criados naqueles tempos vazios de telas e cheios de protagonismos infantis.
Minha infância e minha meninice seguem indeléveis. Deixaram marcas na minha identidade, no meu modo de ver a vida, as plantas, os pássaros, os riachos, os livros e, também, no meu modo de ver as próprias crianças e de construir afetos.
O percurso de estudo, a profissão professora, o foco na primeira infância são pavimentos sempre inacabados de um caminho que me estimula observar mais de perto, escutar mais atentamente o que elas falam, o que elas calam e o que elas demandam. E, ainda, a me sensibilizar para o que elas sorriem e acerca do porquê choram e estreitar um caminho de compromisso ético e ontológico no percurso da minha existência.
É no percorrer desse caminho de caçadora de “achadouros da infância” do poeta Manoel de Barros que me permito refletir e descobrir mais sobre os processos de desenvolvimento, de cuidado, educação e escuta dos pequenos e de mim mesma. Na busca, avisto os avanços sobre os direitos das crianças, sobre o reconhecimento, validação e valorização desse tempo. Mas me inquieto com as precárias formas de olhar e estruturar a vida nestes tempos de profundas transformações climáticas, relacionais e de quintais vazios. Vazios de infância, vazios de achadouros, mas repletas de meninos e meninas apartadas de pão, de colo, de natureza, de escola e de quintais.
Nesse território de vazios – de ruas silenciadas, de braços sem abraços, de brincadeiras sem brincantes – encontro eles, encontro elas, a mim e também boa parte de nós. Olho da minha janela a aridez armada do concreto, o vazio das praças, os corpos curvados e atônitos nas telas. Será que tiramos férias das crianças?
De férias, desbravo memórias e nelas tantos achadouros: cintilam pedras preciosas de várias cores e tamanhos do quintal da minha Vila; ouço conversas, risos, choros de tantos meninos e meninas descalços como eu que correm, pulam cordas, banham-se na chuva, deslizam pelos morros em carrinhos de rolimã, comem frutas do pé; reencontro a liberdade e a permissão do brincar livre (direito e essência do desenvolvimento de todas as crianças). Revivo a apropriação ativa e criativa da vida, sem a necessidade do brinquedo como objeto estruturado, mas com múltiplas possibilidades de explorar a fértil imaginação que por certo todas as crianças possuem.
Um brincar em um “quintal maior que a cidade” – um quintal grande assim! – só é possível quando afastado de um modelo utilitarista e consumista de sociedade que tem tensionado e empobrecido a existência das crianças e das suas infâncias e todos nós.
Pavimentar um outro caminho é, talvez, seguir os labirintos e os quintais por onde andou a criança que fomos. Permitir-se reconstruir memórias e aprender junto às crianças de hoje. Tirar os sapatos, pisar o mesmo chão, procurar novos quintais como aprendizes solidários em uma entrega e abertura ao outro. É colo, é chão, é relação. É experiência que precisa de tempo e de contextos cuidadosamente pensados e estruturados física e emocionalmente. Contextos ricos de cultura, de natureza, de tempos e de espaços instituídos para encontros, confrontos, desafios que estabelecem elos com a realidade interna e externa de cada sujeito e, talvez assim, com um processo civilizatório humanizador.
Até quando ficaremos de férias das crianças?