Somos os resultados de nossas relações sociais. Essas relações se apoderam de nós e nos conduzem, passo a passo, jeito a jeito, dia a dia em nossas trajetórias. As primeiras lições que tomamos, como água que mata a sede, são aquelas que observamos quando ainda somos crianças. Ao nosso redor tudo parece traduzir o único mundo possível. Ali somos dotados dos sentidos para a vida e aprendemos a viver de acordo com as coisas que vemos e ouvimos e sentimos. Se, enquanto somos preparados para a vida social, o mundo que nos rodeia é violento, a violência e a agressividade serão a forma naturalizada da existência do mundo. Nossas memórias relatam nossas experiências daquele único mundo possível.
Da nossa infância trazemos a forma de viver as relações sociais. Novas experiências nos serão dadas e logo ajustadas ao padrão do que conhecemos antes como “o único mundo possível”. O cérebro, ainda insano para compor sentido próprio às coisas, recebe o que lhe é externo. A interiorização do mundo exterior percebe as coisas como se fossem a tradução da verdade possível. Somente com a maturidade sensorial [quando acontece] nos deparamos com um mundo de milhares de outros comportamentos. Se não disponho a mim mesmo que os outros são experiências diferentes e legítimas, então vou me colocar pela imposição do único mundo possível: a verdade, a minha.
A Liberdade de expressão passa a ser, por imaturidade, o impulso da ditatura pessoal. Depois de falar e gerar o conjunto dos comportamentos [gestos, tom de voz, métrica, sentidos, olhar, repetições...] o locutor se dará como fonte de verdade, insuspeito, autêntico, inconteste. Construirá um mundo que lhe dará sentido pessoal pelo dispositivo de impor “a verdade que aprendeu a ver”. Sem poder se pensar, acaba por se fazer de identidade e imagem para si e contra os outros. Restará aos outros, após cada comportamento, a resposta sucessiva de quem “é”. Da sua “boca” se fará sua imagem, sua identidade e, por certo, a “verdade” a ser imposta será motivo apenas para decorar sua personalidade.
Estar em sociedade é sempre se mostrar aos outros, não pela imagem que se quer entregar como presente, tipicamente encontrada no mundo “de felicidade edênica” e “posturas de força” das redes sociais, mas as percepções aos outros. Para cada manifestação social deixaremos aos outros imagens do que somos, a despeito do que queremos ser. A origem de nossa identidade estará na síntese dos outros. E, bom lembrar, sua autoimagem será diferente, se não oposta, daquela derivada do seu comportamento e observada pelos outros.
Cada um se projeta aos outros pelo comportamento, mas não poderá controlar a recepção do que foi dito. Para cada outro, pelo seu próprio mundo, se fará a tradução pelas experiências iniciadas na primeira infância e carregada por outras combinações da vida. A incapacidade de se entender a si mesmo e a necessidade de se impor como tradução da verdade é fonte própria aos conflitos, aos confrontos, à violência. Gritar, ofender, agredir, decidir a vida dos outros, é apenas uma forma de apresentar aos outros, num balaio, seu ser social. Nosso mundo interior nos é desconhecido, e preferimos deixar em ignorância. “E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?” [Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa].
Como na fala que para virar diálogo precisa de entendimento, a liberdade de expressão não é um ser que tem os outros como satélites em órbita. Liberdade de expressão jamais será a imposição de um incrédulo da cidadania a gritar suas vontades, como precursor da verdade que lhe ocupa o íntimo. A liberdade de expressão reside na existência do diálogo; é uma relação dialógica e não um indivíduo reinante. Liberdade de expressão se valida na disposição de dois como Expressão da Liberdade de dois!