Diante de tragédias, desastres, calamidades, catástrofes, tendemos a nos conciliar. As enchentes que ocorrem no estado do Rio Grande do Sul nos dão testemunhos. Há, em cada um de nós, uma vontade “natural”, um impulso de ajuda. Não no sentido de uma troca ou no interesse da reciprocidade, mas por haver condicionantes de sermos comuns e vulneráveis. O “caos” nos aproxima como iguais.
Essa vontade “orgânica” forma o pensamento e os comportamentos de comunidade [de sermos comuns]. Essa vontade “orgânica” está envolvida em espontaneidade como órbita própria de se viver. Há prazer em ser solidário, como um abraço afetuoso. Neste caso as trocas são substituídas por dádivas e contradádivas. Não é o quanto custa como matéria e trabalho, mas o quanto vale como sentimento e solidariedade. Não há finalidade de lucro.
Há também uma vontade reflexiva, artificial, que se origina fora do ser. Esse mundo “artificial” ou “mecânico” nasce de uma vontade calculista e especulativa, se volta para estímulos e concorrência. As trocas são realizadas pelos compostos de mercado e avaliadas em conversões monetárias: “quanto custa?”
Esta distinção resulta em duas formas de formação de grupos sociais: comunidade [vontade orgânica] e sociedade [vontade mecânica ou reflexiva] [TONNIES]. A comunidade é o lugar da intimidade, da confiança mútua, da identidade afetiva. É como um sistema orgânico de relações de interdependência e convivência sentimental. Dizemos que a vida acontece no município, no bairro, na rua onde vivemos exatamente por esta causa. Amizades de longo prazo, partilha de histórias em ambientes comuns, agregação espiritual acontecem ali. É uma relação face-face. Esta é a maternidade da solidariedade social.
A vida em sociedade ocorre em um mundo artificial da economia, da Política, do sistema jurídico. Não há uma doação de vontade, mas concorrências sob condições de disputa e conquista, do individualismo. Todos vivem par si mesmos, numa tábua de cálculos, mercadorias, transações econômicas. É o dinheiro, como estrutura e símbolo de valor, que traduz as trocas. Absolutamente impessoal. A funcionalidade é mecânica. Aqui há muitos obstáculos à solidariedade. São convenções jurídicas, econômicas, políticas que institucionalizam a vida, que estabelecem identidades de Estado [CPF, por exemplo], interesses em competição mediada por instituições sociais. Tudo, ou quase tudo, se transforma em mercadoria, em relações de compra e venda. Ao invés da intimidade [como na comunidade], existe a divisão, a discórdia em termos de concorrência, a agressividade como efeito hierárquico: quem pode mais!
A comunidade se conduz pela comunhão, pelas relações diretas, pelas conversas sem conquistas, pela gargalhada, pelo comprometimento moral, pela ressurreição cotidiana, pela proteção e vigilância pessoais. Por termos sentimentos de comunidade, ainda que não possamos sentir a exata dor daqueles que sofrem as tragédias, os desastres, as calamidades, as catástrofes, podemos ter a emoção de comunidade ao doar algo para outros a quem consideramos comuns, irmãos. Esta espiritualidade de comunidade nos leva à solidariedade, sem lucro material ou vantagem social, sem desejar nada em troca, pelo puro amor e prazer de ajudar ajudando, de querer o bem fazendo: a conciliação!
JANUÁRIO, Sérgio S. | Mestre em Sociologia Política