Colunas


Fátima


Fátima

Fátima estava em desespero por ver seu filho, com apenas 2 anos, pedir comida, qualquer coisa. Fátima tinha trabalhado na coleta de material para reciclagem. Nunca pensou em dar golpes ou tentar ter em suas mãos o que não era resultado de seu esforço. Quando se encontrava com outros catadores [gente que cata coisa] procurava no bolso largo e envelhecido algo para compartilhar. Fome era companhia constante de todos eles.

Mas olhar para o filho em penúria sangrara seu coração com o sofrimento mais doloroso que já experimentara. De todas as violências que sofrera, nenhuma era mais aguda do que aquela. Pensava em ter um pouco de leite, um pedaço de pão, um pedaço de qualquer coisa. Quando estava à procura de material reciclável sempre ficava atenta para algo que pudesse obter sem ferir seus princípios. Mas olhar o filho naquela situação, depois de três dias de muita chuva, sem nada nas mãos, a deixava em luta com os valores morais que aprendeu num abrigo para crianças quando era muito pequena, quando fora abandonada pela primeira vez.

Não poderia sair para trabalhar porque a chuva não permitiria levar o filho. Jesuíno não suportaria um resfriado. Estava faminto e vulnerável. Doía estar diante do filho com fome. Não pensava mais em si. Sua dor poderia ser escondida nas desgraças que se escondiam em seu corpo e em sua história. Mas estar ali, mal abrigada, Jesuíno com fome, em tempos de frio do tempo e humano, trazia aos olhos a fúria instintiva mais primitiva dos animais.

Já não suportava mais! Saiu na chuva intensa, pedindo ao Menino Deus que alguma luz brilhasse diante de si. Já não tinha mais como lutar. Precisava de ajuda. Suas roupas já gastas, suas mãos feridas com pequenos cortes por remexer sobras e coisas indesejadas por outros, seus cabelos mal cuidados, seu olhar de desespero e sem brilho, denunciavam seu estado humano. Precisava de comida! Não para si, mas para Jesuíno.

Foi até a mercearia e lá se sentiu reprendida pelos olhares dos outros. As pessoas a olhavam por dois ou três segundos, fugiam daquela mulher em forma de angústia, como quem foge da vergonha de si, do constrangimento. Faziam com menosprezo. “Melhor não dar atenção porque pode chegar perto demais!”, pensava uma mulher abrigada do frio e do vento e da chuva e da fome. Atrás de uma estante, Lavrod, homem da cidade, machista involuntário da cultura dos homens, urbano e religioso apenas sob o teto do Templo, olhou Jesuíno e lembrou de muitas coisas que já presenciará.

Os olhos de Fátima e as fraquezas de Jesuíno levantaram as mazelas escondidas de Lavrod e das quais se escondia. Quando criança quase morreu por problemas no funcionamento do coração. Se sentia fragilizado, mas se acostumou com suas fragilidades. Já não falava mais nisso; já não pensava mais nisso. Tinha que viver! Desviou seu olhar de Fátima, aquela mulher, expressão das dores de muitos. Lavrod pegou suas compras, escolheu um e outro produto, levou ao homem da calculadora, pagou, pegou o troco, colocou tudo em duas sacolas e viu Fátima!

Jesuíno já não reagia. Com os braços abertos estendidos nos ombros da mãe, pálido, sem vontade de ser o que era, entregava-se ao desalento! Lavrod chamou Fátima, lhe entregou sua capa protetora, e suas sacolas. Fátima comeu depois de Jesuíno. Menino Deus, a luz, Lavrod!

Lavrod, em casa, encharcado pela chuva, sozinho, com frio, pôs-se a chorar! Não sabia definir por que! Ligou a TV para fugir de si novamente, e ouviu as explicações de porque os Deputados Federais votaram a favor de anistia para partidos políticos que não cumpriram cotas de negros e de gênero e que cometeram irregularidades na prestação de contas eleitorais. Fátima não saberia daquilo. Fátima não tem anistia da fome, apenas princípios que aprendeu num abrigo quando fora abandonada pela primeira vez e tantas outras vezes. Todos os dias!

 


Conteúdo Patrocinado


Comentários:

Deixe um comentário:

Somente usuários cadastrados podem postar comentários.

Para fazer seu cadastro, clique aqui.

Se você já é cadastrado, faça login para comentar.

ENQUETE

Você topa encarar a subida da Super Gyro Tower pra ver Balneário Camboriú por outro ângulo?



Hoje nas bancas

Confira a capa de hoje
Folheie o jornal aqui ❯


Especiais

Vítimas esperam indenizações enquanto sócios vivem em imóvel de R$5 milhões

Caso Backer

Vítimas esperam indenizações enquanto sócios vivem em imóvel de R$5 milhões

EUA gastaram milhões para cooptar PF há 20 anos; processo não foi julgado

POLÍCIA FEDERAL

EUA gastaram milhões para cooptar PF há 20 anos; processo não foi julgado

Após avanço no STF sobre reajuste, idosos podem ter derrota para planos de saúde na Câmara

SAÚDE

Após avanço no STF sobre reajuste, idosos podem ter derrota para planos de saúde na Câmara

Vítimas de nudes com IA sofrem em limbo digital enquanto sites lucram: “Me senti abusada”

PERIGO DA IA

Vítimas de nudes com IA sofrem em limbo digital enquanto sites lucram: “Me senti abusada”

Cidades mineiras se preparam para exploração de enorme jazida de terras raras

EXPLORAÇÃO

Cidades mineiras se preparam para exploração de enorme jazida de terras raras



Colunistas

Chiodini vê como natural o MDB como vice de Jorginho

Coluna Acontece SC

Chiodini vê como natural o MDB como vice de Jorginho

Na mira americana

Coluna Esplanada

Na mira americana

Show de Zezé de Camargo em Porto Belo

Charge do Dia

Show de Zezé de Camargo em Porto Belo

O segredo por trás das aposentadorias antecipadas da lei 142/2013: a perícia que muda tudo

Direito na mão

O segredo por trás das aposentadorias antecipadas da lei 142/2013: a perícia que muda tudo

Vitória sofrida

Show de Bola

Vitória sofrida




Blogs

Lixo nas calçadas é problema de todos

Blog do Magru

Lixo nas calçadas é problema de todos

Viralizou

Blog do JC

Viralizou

Nova coluna. Espia!

Blog da Jackie

Nova coluna. Espia!






Jornal Diarinho ©2025 - Todos os direitos reservados.