O processo eleitoral para cargos executivos neste momento é uma experiência sem par na história. Revela-nos muito de nós como conjunto de brasileiros. As máscaras de docilidade e de cordialidade públicas vaporizaram-se e deixaram os ossos da cara aparentes. O que somos é o que fazemos, o que dissemos e o que sentimos. O cinismo e a dissimulação foram flagrados em atos de acusações e violência. Em ambiente da psique, a acusação ao outro é a tentativa de afastar de si mesmo o caráter de dissimulação e não conviver com seus próprios problemas. Ao outro aponto o que eu, por medo e vergonha pessoal, sou, mas não quero ser.
O retrato do que eu sou se faz nos meus próprios atos, mesmo que isso seja o que eu diga dos outros. A intolerância é usada como faca, o preconceito é usado como chicote, e a violência é usada pelas veias da ira. As mentiras inventadas na própria cabeça e as mentiras criadas como Fake News estão na mesma ordem de operações sociais: a incapacidade da cidadania circular nas artérias, e a incapacidade de tentar – ao menos tentar – compreender o outro [empatia].
Somos uma população de preconceituosos, atualmente sem pele no rosto. Rasgada a derme da superfície, o mais importante é entender o que provocamos como unidade. Somos preconceituosos porque não superamos as regras sociais do período imperial. Aos negros a servilidade e a não contestação dos gostos de seu senhor [atualizada em Alexia]; às mulheres o machismo [mesmo vindo de mulheres], e aos contestadores a desmoralização social de sua existência. Somos, em carne e osso, mal passados do tempo que já não existe no relógio, mas que circula em seivas humanas. Os discursos de bons moços e boas moças soam apenas como lastro teatral de uma vida interpretada para terceiros que não podem nos conhecer na intimidade: ali somos perversos e egoístas, violentos e juízes do mundo.
Por se considerar superior, usa-se a intolerância como faca. Assim o interlocutor é subjugado, nunca compreendido. É a minha versão dos fatos – sempre verdadeiras e incorrigíveis – que serão a forma de dizer quem você é, acusar-lhe por qualquer ato, mesmo que tenha sido de ajuda, por estender a mão, por parceria. Nada resiste a este automassacre psicológico. Aos violentos e mal formados em cidadania é suficiente apontar ao outro a acusação de dissimulação, sem jamais poder ouvi-lo – senão as máscaras do acusador caem.
Por sermos violentos não caberá, jamais, qualquer pedido de desculpas sinceras, honestas e capaz de produzir, em nós mesmos, a correção dos atos. No conjunto dos atos, temos medo de nós mesmos, tal como nos revelamos no processo eleitoral atual. Quando pudermos amadurecer um pouquinho que seja, teremos vergonha de contar para nossos filhos e netos o que foi feito pelas nossas mãos e gritado por nossas bocas.
O voto não nos salvará de nós mesmos. Nenhum governo nos salvará de nossa intolerância, de nossos preconceitos. Quem sabe poderá nos limitar em nossa própria violência, mas não com armas para solução dos problemas. Armas são apenas a forma de intolerância, versada na infâmia e no medo. Somos menos, muito menos do que nos dissemos aos outros. A imagem que pintamos de nós mesmos é semelhante ao confuso retrato de Napoleão gritando “Independência ou Morte”: a beleza está nos cavalos de guerra que nunca existiram ali.