O mundo verdadeiro é uma fábula; um arranjo de expressão de um valor moral, que na narração é uma construção para estabelecer a importância do que é o bem desejável. Não se confunde com a realidade, mas é uma projeção de um desejo de como deveria ser a realidade construída pelos comportamentos humanos. A verdade é uma fábula, mas isso não faz nascer a mentira.
A Filosofia, como forma de produção de conhecimento, organiza sua trajetória na incerteza, na dúvida. A Ciência, por sua vez, marcando suas diferenças com a Filosofia, sempre busca se aproximar da verdade, mas sabe que todo conhecimento científico é relativo às condições de medida; o próprio instrumento de medida modifica a maneira de se conhecer. Verdade é um desejo que fica a ser conquistado no dia de amanhã, ou depois de amanhã. Mas isso não faz nascer a mentira. A Verdade das coisas é um desejo científico, embora sempre adiada. Mas isso não faz nascer a mentira.
A mentira não é o mesmo que um erro. Posso errar por minhas convicções, por provocar um engano a mim mesmo, mas isso não faz nascer a mentira. Mentir é uma relação com os outros; não é um deslize, mas uma intencionalidade, uma fraude, é querer enganar o outro, é uma ação deliberada para enganar os outros. Uma pessoa que se engana, mas não quis enganar os outros, não estará mentindo. Mentir é se ter consciência do que é “verdadeiro”, mas enunciar o que é conscientemente falso.
Há dificuldades ou limitações sociais para a enunciação da mentira: o diálogo presencial, o testemunho, a possibilidade permanente de se desmascarar o mentiroso, o veredito das provas, da disposição dos fatos, e as próprias ações de quem num momento defende uma coisa e, quando sob confronto investigativo, “diz-que-não-disse” ou que “sendo-não-foi”.
No mundo da internet, das redes sociais virtuais, da força da covardia da tela sem a limitação da condição presencial inibidora; no encosto da cadeira na qual você não será confrontado com a “verdade”, ali onde você pode vomitar o desejo de seu próprio mundo próprio... Ali tudo pode! Na liquidez virtual a base moral da sociedade não exige comportamento ético fundado no outro. Nas redes sociais o indivíduo pode imaginar que “eu sou somente eu” e o outro é apenas outra coisa qualquer não é devido nem mesmo o mínimo respeito. O disfarce é tamanho que robôs se passam por figurantes sociais.
A condição atual parece transformar tudo em fluidez, em uma instância da malemolência do líquido [Baumann]: tudo se mistura, tudo se dissolve, escorre; nada mais é estável. E, na forma, tudo é modulado pela embalagem e não pelo conteúdo. A Comissão Parlamentar de Inquérito [CPI] da COVID-19 é um espetáculo da mentira. Os depoentes são flagrados em atitudes intencionais de fraude sobre os acontecimentos. A mentira se alarga nas redes virtuais com defensores que acreditam que acreditam. O grito de ontem, nas posturas da arrogância do poder, da autoridade do cargo, ressoa com eco de outras palavras. Na mentira o grito é um e o eco é outro.