MEIO AMBIENTE
O mar vai invadir sua praia: obra de engorda em Natal pode ser problema sem fim
Projeto que tenta limitar avanço do mar na Ponta Negra pode ter impacto socioambiental e será desafio a próximo prefeito
Agência Pública [editores@diarinho.com.br]
Por Gabriel Gama, Mirella Lopes/Agência Saiba Mais | Edição: Giovana Girardi | Fotógrafo: Vlademir Alexandre
Quem frequenta a praia de Ponta Negra, um dos pontos turísticos de Natal (RN), pode observar com os próprios olhos uma consequência direta do aquecimento global: a faixa de areia está diminuindo ano após ano. A causa é o aumento do nível do mar, que age de forma constante na região desde pelo menos a década de 1970 e já impossibilita o uso da praia na maré alta.
Espremidos entre as ondas e o calçadão, os banhistas serão, em breve, impedidos de pisar na areia durante o período de execução de uma obra de engorda da faixa de areia. O empreendimento promete devolver a praia aos natalenses, mas pode trazer impactos socioambientais e desafios complexos ao futuro prefeito da capital do Rio Grande do Norte.
Desde 2012, a cidade discute a necessidade de fazer a engorda de Ponta Negra para conter a erosão costeira – a perda de areia atinge também o morro do Careca, outro cartão-postal de Natal. A obra consiste em extrair areia de uma jazida em alto-mar e depositá-la na costa, para estender a faixa de praia. Sua viabilidade econômica e a chance de impactos ambientais, porém, sempre foram pontos de contestação, e apenas neste ano a prefeitura conseguiu a aprovação da obra pelo órgão licenciador do estado, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (Idema).
O aterro hidráulico, nome técnico do empreendimento, se estenderá por 4 quilômetros na costa e alargará a faixa de praia em 100 metros na maré baixa e 50 metros na maré alta, utilizando 1 milhão de metros cúbicos de areia. Está orçado em R$ 107 milhões, sendo R$ 100 milhões em recursos federais, do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, e o restante da prefeitura.
A empresa que venceu a licitação é a DTA Engenharia, que executou a engorda de Balneário Camboriú, em Santa Catarina. A obra acabou se tornando polêmica e repercutiu no noticiário nacional, pois o mar acabou levando parte da areia tão logo ela foi depositada. Além disso, a obra criou grandes desníveis na praia, que dificultam o acesso dos banhistas.
Em Natal, o processo também passou por altos e baixos e é criticado por especialistas, que veem pouca preocupação do poder público com os potenciais impactos. A prefeitura demorou a responder às colocações apresentadas pelo Idema em 2017, que especificou pontos a serem aprofundados antes de aprovar o licenciamento. O órgão ambiental queria saber mais detalhes sobre a extração da areia e cobrou informações sobre a fauna presente na área da jazida, para compor um programa de monitoramento da biota aquática mais robusto.
Em julho de 2023, o Idema concedeu uma licença prévia com mais de 50 questionamentos. Antes mesmo de responder, em dezembro a prefeitura finalizou a etapa prévia à engorda, o chamado enrocamento completo da praia de Ponta Negra, com a instalação de um cordão de pedras junto ao muro de concreto que separa a areia do calçadão.
Só em 12 de junho deste ano, a prefeitura solicitou a licença definitiva, quando começou a contar o prazo de 120 dias para análise do órgão, que se encerraria em outubro. Mas, antes mesmo de concluídos os trâmites, a empresa contratada já havia levado a Natal uma draga para realizar a engorda, só que, na falta de licença, ela ficou duas semanas ancorada, até que deixou a cidade.
O fato levou o prefeito, Álvaro Dias (Republicanos), a acusar o Idema de agir para atrasar o início do empreendimento, sendo que a própria prefeitura havia demorado mais de um ano para responder aos pontos levantados pelo licenciador.
Em 8 de julho, Dias participou de um protesto que cobrava a aprovação da licença na sede do órgão ambiental. Sob os olhos do prefeito, os manifestantes arrombaram o portão do Idema e ocuparam o prédio, em um episódio que simboliza o grau de tensão social que envolve a obra, segundo especialistas ouvidos pela Agência Pública. A prefeitura negou o caráter violento da manifestação.
Em 23 de julho, o Idema acabou concedendo a licença de instalação e operação da obra de engorda, em cumprimento à determinação do juiz Geraldo Antônio da Mota, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Natal. Na ocasião, o diretor do órgão licenciador, Werner Farkatt, afirmou que o Idema fazia discussões periódicas com a equipe contratada pela prefeitura, mas “infelizmente o âmbito técnico foi contaminado”. Segundo ele, “usaram toda sorte de artimanhas para forçar a liberação dessa licença sob uma ordem judicial”.
Farkatt disse que a licença seria concedida, mas que o processo acabou atropelado pela Justiça. Três semanas depois, o Idema emitiu a licença definitiva com 83 condicionantes, sendo que 12 foram consideradas impeditivas pela prefeitura e reconsideradas pelo órgão.
Por que isso importa?
O aumento do nível do mar por causa do aquecimento global já levou a uma retração da faixa de areia de cerca de 1,6 a 2 metros por ano na Ponta Negra, um dos maiores atrativos turísticos de Natal.
Prefeitura corre para entregar obra antes do fim da gestão, mas problema não estará resolvido e os candidatos ao cargo não têm discutido o assunto em seus planos de governo.
Sem clima na obra sobre o clima
O ritmo acelerado da tramitação acabou excluindo do debate o próprio motivo pelo qual a cidade precisa fazer a obra. “A mudança climática foi o último item da pauta sobre a engorda”, avalia Venerando Amaro, professor de engenharia ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenador do Laboratório de Geotecnologias Aplicadas, Modelagens Costeira e Oceânica.
Amaro acompanhou essa discussão desde o início. Ele participou da elaboração de um laudo pericial emergencial sobre a erosão costeira encomendado pela prefeitura em 2012 e considera que o aterro hidráulico é, de fato, a única alternativa viável para recuperar a Ponta Negra e reforçar o papel de defesa costeira que a praia exerce. Porém, expressa preocupação com a politização da obra em ano eleitoral e a falta de atenção aos princípios de engenharia que devem reger um empreendimento dessa magnitude.
Uma de suas apreensões é em relação ao tempo de execução da obra. Pelos estudos de Amaro, o ideal seria realizar o aterro em 240 dias ininterruptos, avaliando cuidadosamente os impactos e o assentamento da areia. A estimativa da prefeitura é concluir em 90 dias, antes do fim da gestão municipal, o que seria algo “assustador”, diz o pesquisador. A draga retornou a Natal na última quarta-feira (28) e começou a operar na jazida nesta sexta (30), dando início à obra.
“A nossa maior luta é para que façam a engorda dentro dos preceitos corretos. Porque hoje a obra de engorda não é uma novidade. O Brasil já passou por várias, em Recife, Fortaleza e Balneário Camboriú. O problema é que os políticos dizem que é a solução definitiva, mas não é. Essa obra tem prazo de validade, e a população precisa entender isso. Alguns países trabalham com engordas que precisam ser refeitas só depois de 20 anos, mas em Natal já trabalham com prazos de dez ou cinco anos. E é difícil achar R$ 100 milhões a cada gestão [para fazer novas engordas]”, afirma Amaro.
Ada Scudelari, especialista em engenharia costeira e professora também da UFRN, explica que o aterro hidráulico não cessa a erosão, e sim fornece areia para que o processo erosivo que está instalado tenha material para levar. Segundo ela, a engorda da praia exigirá manutenção constante: “O volume financeiro da manutenção é diretamente proporcional ao custo da obra. Se perder 10% das areias que foram depositadas no aterro inicial, terá um custo proporcional a um reaterro correspondente a esses 10%”.
“Tudo passa pela resposta à pergunta: o que você espera desta praia? Podemos chegar a uma situação em que a manutenção da praia, como nós a conhecemos, com esse uso de recreação e contemplação, se apresente financeiramente inviável. Aí esquece o aterro. Mas temos que ter em mente que, ao fazer isso, perdemos aquilo que a gente chama de praia. Aquela coisa de colocar cadeirinha e guarda-sol não vai existir mais, vai ter mar o tempo inteiro”, pontua Scudelari.
Amaro acompanha a zona costeira de Natal desde a década de 1990 e estuda o aumento do nível do mar na região. Com base em dados coletados no porto da cidade e calibrados por satélites, as medições científicas mostram um aumento de 3,4 a 3,6 milímetros do nível médio do mar por ano desde 1970. O pesquisador destaca que esse valor não é baixo: como as praias locais são muito planas, um aumento dessa ordem gera, hoje, uma retração da faixa de areia de cerca de 1,6 a 2 metros por ano, que é a área da praia efetivamente perdida para o mar.
“O mar não sobe feito uma banheira que você coloca para encher e o nível da água vai subindo lentamente. Na verdade, esse aumento está perturbado pela intensificação das energias da interface oceano-atmosfera, por causa das mudanças climáticas. As ondas mais fortes e as marés mais intensas chegam na linha de costa e destroem o que veem pela frente de uma forma avassaladora”, explica.
Ameaças vêm do mar, mas também da terra
Só que o aumento do nível do mar não é a única ameaça ao litoral de Natal, apontam os pesquisadores. Em dezembro de 2021, a Câmara Municipal aprovou um novo Plano Diretor que liberou a construção de hotéis e residências na Via Costeira, um trecho da praia de Ponta Negra contíguo ao Parque das Dunas, uma unidade de conservação estadual. “Não dá para abrir para ocupação do mercado imobiliário em partes que o mar é extremamente violento. Em alguns lugares, estão cogitando construir prédios de 30 andares a 20 metros da linha de costa”, afirma Amaro.
Ada Scudelari defende que a cidade deveria recuar ou minimizar a ocupação da zona urbana mais próxima à praia, em vez de atender à especulação imobiliária que está interessada na retomada da Ponta Negra por causa da engorda. “A alteração do plano diretor é precipitada. Ela não leva em conta mudanças de curto e médio prazo, quanto mais alterações de longo prazo que podem acontecer. São permissões que estão acontecendo em zonas de grande fragilidade. Na forma como estão, elas representam um equívoco”, complementa.
Outra preocupação é com a impermeabilização das ruas e o lançamento do fluxo de água superficial na orla. A água da chuva que cai na cidade é escoada e despejada na areia por galerias de drenagem, o que agrava ainda mais a erosão da praia, segundo Venerando Amaro. Também há diversos registros de ratos vivendo escondidos nas pedras do enrocamento.
O pesquisador salienta que o debate sobre a engorda acabou sendo dominado pela questão econômica e turística, sem a profundidade necessária sobre os impactos da mudança do clima. Diante dos agravantes em terra firme, o aterro não deveria ser a única política de adaptação climática da prefeitura, que, segundo ele, deveria considerar também mudanças na drenagem urbana e na ocupação do litoral.
Impactos aos pescadores e ao ecossistema marinho
A pesca artesanal é a principal atividade econômica que será impactada pela obra. Durante o período da execução da engorda, a praia de Ponta Negra ficará interditada, impedindo o trabalho dos pescadores.
Lindemberg do Nascimento pesca há 25 anos e sustenta a esposa e os três filhos. Atualmente, ele trabalha em uma região conhecida como Vale das Cascatas, localizada na Via Costeira. É o local onde a empresa responsável pela obra estocou os materiais.
“Vai começar bem onde a gente pesca. Durante o tempo da obra, a gente vai ficar sem fazer nada”, diz. A Pública questionou a prefeitura de Natal sobre um possível auxílio financeiro aos pescadores. A administração respondeu que houve um acordo na Justiça para o pagamento de ao menos um salário mínimo para a classe, enquanto a obra durar – o valor exato ainda não foi definido.
Os pescadores dizem que suas preocupações com a engorda não foram ouvidas no processo de licenciamento. Eles se queixam também da escassez de informações sobre o empreendimento. Em 18 de julho, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou que o Idema não aprovasse o licenciamento da engorda sem realizar uma consulta pública livre, prévia e informada com os moradores da região que seriam impactados pela obra.
O Idema afirmou à Pública que foi firmado um acordo entre a Justiça Federal, a prefeitura e o MPF, no qual as entidades optaram por não adotar o padrão de consulta pública estabelecido na Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Foi decidido também que a consulta pública não seria um impeditivo para o início da engorda. A comunidade de pescadores de Ponta Negra foi, enfim, consultada, e o relatório foi apresentado à Justiça Federal no último dia 21.
“A gente tem muito medo dessa obra, porque nada foi mostrado para a gente, não informaram como vai ficar a praia. O mar sempre vai querer o que é dele, e os peixes vão reduzir [em quantidade] por muito tempo. A praia nunca mais será a mesma, só vai ficar mais bonita. Nós, pescadores, temos a convicção de que a praia nunca mais vai ser boa para nós”, afirma Beto, um pescador que prefere ser identificado apenas pelo primeiro nome.
O receio de Edson Nogueira, que pesca há 20 anos, também tem a ver com o que acontecerá depois da engorda. “Acho que depois de um ano eles [os peixes] voltam, porque vai revolver o fundo [do mar]. Mas pode vir tubarão também.”
A apreensão é compartilhada pelo professor Venerando Amaro, que explica que a cadeia alimentar marinha pode mudar com a engorda. A extração da areia em alto-mar irá suspender nutrientes e aumentar a concentração de matéria orgânica na água, o que pode favorecer a aproximação de peixes maiores, como os tubarões, da orla – algo que não acontece hoje.
“Uma obra de engenharia desse porte vai causar uma alteração importante no local onde vão extrair a jazida. Tem um ecossistema que frequenta aquele pacote de areia naquela profundidade, que vai sentir mudanças com a suspensão dos nutrientes. E a areia que vem para a costa pode ter cheiro ruim, porque estava em uma zona com menos oxigênio e agora vai estar exposta à oxidação”, afirma Amaro.
Outra consequência esperada do empreendimento é a alteração das características do mar. “Hoje dá para surfar em alguns setores, e banhistas frequentam as áreas mais calmas com crianças. Tudo pode ficar diferente, as correntes marítimas podem mudar por um tempo, até tudo se adequar. A praia pode ficar vertiginosa, sendo que hoje é muito plana. Então, vai ser preciso alertar os frequentadores. A responsabilidade disso é da gestão municipal, fazer uma cartilha ilustrativa, divulgar essas alterações. Vão fazer?”, questiona o engenheiro ambiental.
À reportagem, a prefeitura não detalhou as ações que pretende tomar para conscientizar os banhistas após a conclusão da obra.
Gestão dos impactos da engorda ficará para o futuro prefeito: o que os candidatos pensam?
A Pública questionou por e-mail os seis candidatos à prefeitura da cidade sobre como eles pretendem lidar com a engorda de Ponta Negra. Somente o candidato Nando Poeta, do PSTU, respondeu no prazo indicado.
O atual chefe do executivo, Álvaro Dias, era vice de Carlos Eduardo, que renunciou ao cargo em 2018 para concorrer ao governo do estado e acabou derrotado. Dias foi reeleito no primeiro turno em 2020, e, nas eleições deste ano, Carlos Eduardo se lançou candidato pelo PSD e ocupa o primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto. Eduardo, porém, não é o candidato da situação.
Sua proposta de governo não menciona a engorda. Porém, nas redes sociais, ele criticou a condução da obra pela prefeitura de seu antigo parceiro e o governo do estado. Segundo ele, estão “discutindo quem tem razão enquanto o morro do Careca é levado pelo mar”.
O segundo colocado nas pesquisas é Paulinho Freire (União Brasil), endossado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e o prefeito Álvaro Dias. No plano de governo, há a menção ao desenvolvimento de um “ambicioso plano urbanístico para a praia de Ponta Negra, buscando transformar a área em um espaço vibrante e sustentável após a engorda da faixa de areia”. Freire já afirmou que “Natal não pode perder essa obra, isso atinge nossa principal indústria, o turismo”.
A candidata do PT, Natália Bonavides, que está em terceiro lugar, não trata da engorda no programa de governo e culpa a prefeitura pela demora na aprovação da licença. “Na obra que dizia ser prioritária para a gestão [municipal], levou quase um ano desde a [concessão da] licença prévia do Idema até a prefeitura encaminhar o pedido de licença definitiva para o início das obras”, disse na ocasião em que a draga deixou Natal.
Rafael Motta, do Avante, cita em seu plano de governo que pretende “modernizar e padronizar a orla da praia de Ponta Negra” e não se posiciona sobre a engorda. Já Hero Bezerra, do PRTB, planeja a “continuidade da engorda de Ponta Negra e revitalização nunca vista da nossa orla de praias”, mas não há nenhuma menção aos riscos das mudanças climáticas.
O candidato Nando Poeta, do PSTU, se posiciona contra a engorda em sua proposta de governo: “A exploração capitalista se move pelo lucro rápido, que termina sendo destrutivo ao meio ambiente. É isso que está por trás das obras que a prefeitura e a maioria dos vereadores tentam impor através de construções e intervenções que afetam o meio ambiente e a orla de Natal, como a engorda de Ponta Negra”.
À Pública, Poeta afirmou que “a obra está sendo conduzida sem as medidas compensatórias necessárias para os trabalhadores da praia ou para as espécies afetadas” e que “a pressa da prefeitura para esta obra não é a de quem busca resolver o problema indo à raiz, e sim de quem busca fazer politicagem nas eleições em cima do empreendimento”. Se eleito, ele se comprometeu a criar mecanismos de compensação para pescadores, quiosqueiros e ambulantes, além de implementar ações para proteger a fauna e flora locais.
Caso os demais candidatos respondam aos questionamentos da reportagem, o texto será atualizado.