PEC que “privatiza” áreas de marinha provoca polêmica
Projeto está em análise no Senado e caiu na boca do povo depois do racha entre Luana Piovani e Neymar
João Batista [editores@diarinho.com.br]
Professor da Univali comenta riscos e interesses por trás da proposta (Foto: João Batista)
Advogado entende que PEC resolve regime jurídico das áreas e não afeta praias (Foto: João Batista)
Faixa de marinha no Brasil é menor que em outros países
(foto: João Batista)
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê a transferência de áreas de marinha para estados, municípios ou particulares, também impactará no litoral catarinense. O projeto dividiu opiniões na audiência pública na semana passada na comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e gerou polêmica nas redes sociais entre a atriz Luana Piovani, que é contra a proposta junto com ambientalistas, e o jogador Neymar, favorável à ideia.
A PEC rola há mais de 10 anos. O projeto foi apresentado em 2011 pelo então deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA), mas só em 2022 foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado ...
A PEC rola há mais de 10 anos. O projeto foi apresentado em 2011 pelo então deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA), mas só em 2022 foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado Federal. Na semana passada, a PEC começou a ser analisada pelos senadores, sob relatoria de Flávio Bolsonaro (PL-RJ) na CCJ. No senado, parlamentares contestaram o entendimento de que a PEC privatizaria as praias.
Para Flávio Bolsonaro, a proposta facilitaria o registro fundiário, melhoraria a gestão das áreas e ainda geraria empregos. O texto da proposta prevê que a União não terá mais propriedade exclusiva sobre os chamados “terrenos de marinha”, cedendo as áreas a municípios e estados e permitindo a venda para quem já ocupa das terras. Especialistas ouvidos na CCJ alertaram para riscos ambientais e sociais da medida.
Senador catarinense quer que PEC tenha mais debate
O senador catarinense Esperidião Amin (PP) é um dos que criticou a ideia de que a PEC vai privatizar praias. Ele defende que não há nada no texto que permita isso, mas admitiu que há pontos do projeto que precisam de mais debate. Para Amin, a proposta permite a descentralização, retirando o “centralismo” de gestão e decisões que existe hoje.
“Apostar no centralismo não é bom para um país que é uma Federação. Não vamos ser sócios do medo. Vamos discutir o teor real da PEC”, disse. Já outros senadores manifestaram preocupação com o avanço da proposta. A senadora Leila Barros (PDT-DF), presidente da comissão de Meio Ambiente, reconheceu problemas de gestão das áreas, mas entendeu que, na prática, o projeto enfraquece a legislação ambiental.
“A extinção dos terrenos de marinha e a transferência de propriedade podem afetar a função dessas áreas na mitigação das mudanças climáticas”, afirma.
Os impactos ambientais e sociais também foram abordados pela coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente, Marinez Eymael Garcia Scherer.
Ela lembrou que a faixa de área de marinha no Brasil, de 33 metros, já é menor que em outros países, como Portugal (50 metros), Suécia (100 a 300 metros), Uruguai (150 a 250 metros) e Argentina (150 metros).
Com o avanço do nível do mar nos últimos anos, ela alerta que PEC afeta áreas onde há estruturas naturais de proteção, com risco de perdas de manguezais e restingas, que pode levar a perdas humanas e econômicas.
Doutor em ecologia destaca riscos e interesses por trás da PEC
O professor da Univali, Marcus Polette, especialista em gestão costeira e doutor em Ecologia e Recursos Naturais, elaborou um manifesto pra divulgação que trata dos principais pontos da PEC e dos interesses por trás da proposta. Ele analisa que o que existe é uma disputa de direito de propriedade, com bilhões de dólares em jogo.
Segundo entende, hoje as áreas de marinha tem um regime de aforamento no qual os particulares possuem o domínio útil de 83% do imóvel e 17% é da União. Com a PEC, a parte da União poderia ser vendida, com o terreno passando definitivamente para o ocupante da área, que não pagaria mais a taxa de foro.
“Isso também significa, na prática, que empresas a exemplo de resorts, hotéis e cassinos, e outros ocupantes privados poderiam adquirir a posse de terrenos frontais às praias. Resorts, cassinos e hotéis poderão impedir o livre acesso do cidadão comum às praias, fato esse que infelizmente e espertamente já ocorre em muitas regiões do país”, comenta.
Polette ainda explica que, ao contrário de quem defende a PEC, a proposta não irá beneficiar ocupantes das áreas, e também rebate o argumento de que a regularização fundiária facilitaria políticas públicas locais.
“A manutenção dos terrenos de marinha atualmente está sendo objeto de planejamento do Projeto Orla, onde centenas de municípios já aderiram a esse projeto com a finalidade de tomar decisões de forma participativa com a população dos municípios costeiros”, diz.
O manifesto lembra o caso da Espanha, que usou a mesma estratégia da PEC mas voltou atrás, pois a privatização das áreas resultou em prejuízo pro tesouro nacional, à população costeira e pro meio ambiente. No Brasil, o impedimento de livre acesso às praias em regiões com resorts e condomínios já demonstra o risco que a PEC poderá intensificar.
A fragilização de áreas importantes para a proteção costeira, como manguezais, restingas e dunas, também ficariam ameaçados com a proposta, abrindo espaço para empreendimentos. “Muitos dos políticos que defendem a PEC residem ou possuem casas à beira-mar, existindo assim um grande interesse e inúmeros lobbies, já em andamento, para privatizar todas essas áreas públicas à beira-mar, não apenas por grupos estrangeiros mas também para os brasileiros”.
Advogado entende que PEC não vai privatizar praias
O advogado Rodrigo Duarte Maia, que preside a comissão de Direito Imobiliário e Ambiental da subseção da OAB de Balneário Piçarras e é membro da comissão de Direito Ambiental da OAB-SC, informa que, no âmbito da seccional está sendo discutida a elaboração de uma nota técnica pra esclarecer a população sobre a PEC.
Rodrigo adianta o entendimento de que a proposta não envolve a privatização das praias. Ele comenta que quando o Império criou as terras de marinha, o objetivo sempre foi a venda, e não a proteção por motivos de guerra ou meio ambiente. “Essa lei, dentre outras razões, servia para arrecadar fundos para fazer frente às despesas da guerra. Ou seja, as terras de marinha sempre tiveram como objetivo-mor a venda destas áreas para terceiros/privados”, afirma.
Até hoje, segundo defende Rodrigo, o governo não teve eficiência em concretizar a lei que determinou a criação das terras. Em paralelo, a chamada enfiteuse ou aforamento, ainda mantido no novo código civil para as áreas de marinha, ser tornou um direito anacrônico e prejudicial à sociedade.
Segundo o advogado, a PEC busca resolver os problemas do regime jurídico ligado às áreas de marinha, permitindo a transferência da gestão para estado e prefeituras e a venda o percentual que ainda é da União para terceiros. Ele entende que as praias continuarão protegidas e com acesso garantido a todos.
“O Código Civil regula o que sejam bens públicos de uso comum do povo e os dominiais. As terras de marinha são dominiais, mas as praias são bens de uso comum do povo. Os bens de uso comum do povo, como um rio ou uma praia, não podem ser vendidos. Por isso esclareço que a PEC 03/2022 não traz nenhum risco de privatização das praias”, conclui.
Áreas de marinha vem do Brasil Imperial
Os chamados “terrenos de marinha” são terras de propriedade da União que ficam no litoral, numa faixa de 33 metros a partir da linha média das marés registrada no ano de 1831. Margens de rios e lagoas que sofrem influência das marés também se enquadram no conceito, criado ainda na Brasil imperial. Apesar do nome, as áreas nada têm a ver com a Marinha do Brasil.
A abrangência dos terrenos é determinada por estudos técnicos, com base em plantas, mapas e documentos históricos. Inicialmente, as terras eram destinadas à instalação de fortificações de defesa contra invasões marítimas. A medida de 15 braças, equivalente a 33 metros, era considerada a largura suficiente pro deslocamento de um pelotão militar e pra assegurar a defesa do país.
A faixa segue estratégica para o governo. Hoje, a principal legislação é o decreto-lei de 9760, de 1946, que trata da definição, demarcação, regularização, fiscalização e ocupação das terras de marinha. Os ocupantes de áreas pagam taxas de “aluguel” para a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) pelo uso (foro) ou quando há transferência do imóvel (laudêmio).
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