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Câncer, malformação, “viroses”: a crise de saúde puxada por agrotóxicos na terra da soja

Danos colaterais do uso de veneno próximo a áreas urbanas assombram cidades como Lucas do Rio Verde, Sinop e Sorriso

Foto: João Canizares
Foto: João Canizares

Agência Pública | Por Caio de Freitas | Edição: Thiago Domenici | Fotógrafo: João Canizares

No “Nortão” de Mato Grosso, o uso de agrotóxicos é comum em cidades dominadas pelo agronegócio como Lucas do Rio Verde, Sinop e Sorriso. Moradores relatam que pelo menos duas vezes por ano passam pelo mesmo problema de saúde: náuseas, vômitos e diarreia. Para trabalhadores rurais e quem vive nos limites dessas cidades, ao lado das lavouras de algodão, milho e soja, o mal-estar se repete mais vezes a cada ano, geralmente na mesma época do plantio das novas safras. Mas há outros casos, ainda mais graves e recorrentes, neste trecho da rodovia BR-163.

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Silos, lavouras e casas ficam lado a lado no Nortão de Mato Grosso, com impactos abafados sobre a saúde coletiva (Foto: João Canizares)

Multiplicam-se episódios de malformação de bebês, com mortes de recém-nascidos e internações, sem sucesso, em unidades de tratamento intensivo (UTI). Ocorrem ainda repetidos casos de aborto espontâneo no início da gestação, entre a 9a e 12a semanas.

Mas no protocolo de perguntas às pacientes que perdem seus bebês, por exemplo, não há orientação para que se questione sobre a exposição da paciente a substâncias químicas, como os agrotóxicos despejados sistematicamente nas lavouras que invadem as cidades.

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Dispersão aérea e terrestre: ruralistas defendem o uso ostensivo de agrotóxicos para quebrar recordes de produção, ignorando danos à saúde coletiva (Foto: João Canizares)
Dispersão aérea e terrestre: ruralistas defendem o uso ostensivo de agrotóxicos para quebrar recordes de produção, ignorando danos à saúde coletiva (Foto: João Canizares)

 

Dispersão aérea e terrestre: ruralistas defendem o uso ostensivo de agrotóxicos para quebrar recordes de produção, ignorando danos à saúde coletiva (Foto: João Canizares)

Para pesquisadores e profissionais de saúde ouvidos pela Agência Pública na região, tanto os casos graves quanto a recorrência de episódios de mal-estar provariam uma intoxicação em massa pelo abuso de agrotóxicos. Mas para o agronegócio e grande parte da elite local a resposta é outra: são apenas “viroses” e fatalidades que naturalmente acometem a população.

“Na época do plantio das novas safras, é normal as pessoas passarem mal sem procurar atendimento médico. Por aqui, tudo não passa de ‘virose’ que se trata em casa mesmo, com uma dipirona ou paracetamol, e não uma intoxicação em massa”, disse à Pública um dos profissionais de saúde ouvidos na condição de anonimato, por temor de retaliações.

“Infelizmente, aqui é comum que pessoas sejam diagnosticadas com câncer do sistema nervoso central, câncer linfático e leucemia, por vezes fulminantes, com pacientes levados a óbito em poucas semanas após o diagnóstico. Os sinais de algumas destas doenças graves são ignorados – como por exemplo fortes dores de cabeça, que são vistas como coisas corriqueiras, ao invés de servirem de alerta para a realização, com urgência, de exames de alta complexidade para um diagnóstico rápido e preciso”, afirmou à Pública outro profissional de saúde que atua na região.

Epidemia de câncer em crianças e adolescentes

Estudos recentes agravam o cenário quanto à saúde da população em diversas das cidades na rota da BR-163 em Mato Grosso. Enfermeira, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mariana Soares estuda casos de câncer infantojuvenil no estado, especialmente em regiões marcadas pelo uso ostensivo de agrotóxicos como Lucas do Rio Verde, Sinop e Sorriso.

Especializado em casos de câncer, Hospital de Amor, de Barretos (SP), abriu uma filial em Sinop (MT), mas não há tratamento de pacientes na unidade – onde são realizados apenas exames para certos tipos de câncer (Foto: João Canizares)

Segundo Soares, o foco em crianças e jovens se explica pela ausência de hábitos associados a outros tipos de câncer, como consumo de substâncias alcoólicas ou dependência de nicotina, por exemplo – o que dificultaria uma análise precisa das causas da doença nos pacientes infantojuvenis.

“A partir de dados oficiais do Ministério da Saúde e do IBGE, já identificamos que, quanto maior o uso de agrotóxicos em uma região, proporcionalmente aumenta a incidência de câncer infantojuvenil no mesmo local”, disse à Pública a pesquisadora.

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“Quanto maior o uso de agrotóxicos numa região, proporcionalmente aumenta a incidência de câncer infantojuvenil”, diz Mariana Soares, pesquisadora da UFMT (Foto: arquivo pessoal)

Os estudos dela evoluíram para uma pesquisa com pacientes já diagnosticados e em tratamento contra o câncer, para identificar a exposição de adultos a substâncias tóxicas por causa de suas profissões.

“Quem foi exposto a agrotóxicos e intoxicado tinha associação com determinados tipos de cânceres, o que foi importante para provar que pessoas expostas ocupacionalmente tiveram maior incidência de câncer”, afirmou Soares.

Segundo ela, prontuários oficiais e dados territoriais de incidência da doença revelam que 68% dos pacientes infantojuvenis do Hospital do Câncer em Cuiabá (MT) vêm do interior – especialmente de regiões tomadas pelo agronegócio, como Lucas do Rio Verde e outras cidades no eixo da BR-163.

“Nossas pesquisas atuais já sugerem que, quando os pais dos pacientes infanto-juvenis têm ocupações expostas a agrotóxicos, aumentam as chances de cânceres como leucemias e linfomas”, disse Soares.

“Mais grave ainda é notar que crianças de 0 a 4 anos representam 26%, mais de um quarto do público atingido, o que reforça a possibilidade de eventuais mutações genéticas nos progenitores antes mesmo da gestação dos bebês”, afirmou a pesquisadora da UFMT. 

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Para lucrar bilhões, o agronegócio não dorme ao longo da BR-163 (Foto: João Canizares)

 

Intenso tráfego nas estradas e um forte odor de processamento de grãos marcam a região (Foto: João Canizares)

Perseguição contra pesquisadores de saúde

Há 12 anos, o médico e professor da UFMT Wanderlei Pignati revelou a contaminação por agrotóxicos do leite materno de mulheres em Lucas do Rio Verde, uma das cidades mais importantes para o agro no Nortão.

Ao fim, a pesquisa resultou na proibição da presença dele e de pesquisadores do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast), da UFMT, na cidade dali em diante – com riscos à integridade física dos pesquisadores como um todo.

“Não se trata do agronegócio em Mato Grosso desacreditar a ciência: ele trabalha incansavelmente para desregulamentar todas as leis de proteção à população, aos animais, às águas e ao meio ambiente”, disse o professor da UFMT.

“Anos atrás, quando percorri a região com uma colega da Fiocruz, fomos ameaçados, sim. Houve cidade que saímos às pressas, quando pessoas de lá souberam do objetivo de nossa pesquisa, e depois soubemos que profissionais que apoiaram nossos estudos tinham sido demitidas”, disse Pignati à Pública.

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Entre as pesquisas realizadas por ele e sua equipe, destaque também para a identificação de resíduos de glifosato – agrotóxico associado a casos de depressão, infertilidade, Alzheimer, Parkinson e câncer, usado em lavouras de soja – nos bebedouros de escolas em locais com produção agrícola de alimentos em grande escala.

“Já divulgamos inúmeros dados alarmantes quanto à incidência, acima da média nacional, de casos de intoxicação aguda, câncer infantil, malformação de recém-nascidos, mas a consequência foi uma repressão ainda maior por parte do agronegócio – diretamente ligada aos poderes Executivo e Legislativo na região – para que servidores ‘subnotificassem’ casos nos anos seguintes”, afirmou o pesquisador da UFMT.

Wanderlei Pignati, da UFMT, foi um dos pesquisadores ameaçados por estudar a ocorrência de enfermidades causadas pela alta exposição a agrotóxicos no Nortão (Foto: reprodução Midianews)

 

Bolsonarista quer afrouxar legislação de agrotóxicos

Enquanto eleitores de Mato Grosso voltavam suas atenções para a corrida eleitoral de 2024, deputados estaduais deram sinal verde para um projeto de lei sobre agrotóxicos que traz riscos à saúde de todos.

Proposto pelo homem de confiança do clã Bolsonaro no Nortão, o deputado Gilberto Cattani (PL), o projeto quer reduzir as distâncias mínimas para a aplicação terrestre de agrotóxicos em áreas próximas a cidades e mananciais de água, dos atuais 300 metros para meros 25 metros.

“Não é uma questão ideológica”, alega o deputado Gilberto Cattani (PL) ao defender a redução dos limites para aplicação de agrotóxicos em áreas povoadas de MT (Foto: João Canizares)

 

Além disso, o projeto quer substituir o termo “agrotóxicos” por “defensivos agrícolas”, uma mudança que “alinha-se às tendências atuais do setor e reflete os avanços tecnológicos na produção de produtos menos tóxicos”, segundo o relator da proposta, o deputado Carlos Avalone (PSDB) – que emitiu um parecer favorável ao projeto no último dia 13 de agosto.

“Na prática, estamos pensando apenas em melhorar as condições dos pequenos produtores, que estão com dificuldades em manter suas produções”, disse à Pública o responsável pela proposta, Gilberto Cattani.

Indagado sobre o impacto de seu projeto, caso aprovado, na saúde coletiva da população de Mato Grosso, considerando-se o avanço de casos graves e a suspeita de silenciamento e subnotificação de intoxicações, Cattani minimizou quaisquer danos.

Sem apresentar evidências, o deputado disse que alertas quanto aos malefícios do uso ostensivo de agrotóxicos no Nortão são “mentiras”.

“Não é uma questão ideológica, é uma questão de lógica: se isso [doenças ligadas ao abuso de agrotóxicos] não acontece com nenhum dos meus parentes e meus amigos, que trabalham com agricultura, só pode ser algo ‘montado’ para culpar o agronegócio”, afirmou o deputado.

A tentativa de afrouxar a legislação estadual quanto à proibição de uso de agrotóxicos em áreas urbanas e mais povoadas em Mato Grosso segue a linha do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

À época da gestão da hoje senadora pelo Mato Grosso do Sul Teresa Cristina (PP), o Ministério da Agricultura reduziu a distância mínima em relação a vilas, povoados e cidades para aplicação de produtos do tipo – de 500 metros para 250 metros. A decisão saiu no Diário Oficial da União logo no início da pandemia de covid-19.

Para o pesquisador da UFMT Wanderlei Pignati, a proposta do deputado bolsonarista revela a voracidade do agronegócio em Mato Grosso, ao mesmo tempo que pode gerar consequências não previstas pelo setor.

“Nós pesquisamos as condições de saúde em três municípios marcados pelo agronegócio no Nortão e, neles, quem mora a até 300 metros de onde há aplicação de agrotóxicos tem o dobro de chances de desenvolver diabetes, aumentam as chances de malformação de bebês e casos de câncer infantil… Isso na legislação atual. Se o limite baixar para 25 metros, eles vão aplicar nos quintais, ao lado dos mananciais, nas escolas. O problema só vai aumentar”, afirmou Pignati.

“Se essa lei passar, haverá um retrocesso muito grande não só aqui no estado, como para o agronegócio nacional, de modo mais amplo. Vai repercutir negativamente nas exportações de commodities, nos índices de saúde do trabalhador e da própria população… Temos um agronegócio insaciável e inconsequente”, disse ainda.

 

 

 

 




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