Colunas


Artigos

Artigos

Por Artigos -

Década de 60: a morte da inocência


O final da década de 60 foi marca­do pelo início de uma grande revolu­ção comportamental. Tivemos, neste período, o ápice do movimento hip­pie, a revolução sexual, o surgimento do feminismo e a disseminação das drogas entre a juventude, se contra­pondo ao lirismo nas manifestações socioculturais da primeira metade da década. Foi o período que marcou o princípio do fim da inocência.

Conheci Zó e Zi no final dos anos 60, quando o movimento da con­tracultura ainda respirava. Zó tinha 17 anos e a principal característica de seu cérebro era produzir ideias improdutivas. Zi, a garota, tinha 15 anos e era muito bem articulada. Seu vocabulário era magnífico! Tinham em comum, além do fato de serem irmãos, o hábito de “fumar um” e de­gustar cogumelos. “Para ficar legal”, diziam.

No balcão generoso (ainda bem que tinha balcão) do bar da Cacau, eu e o Anacleto mandávamos co­nhaque, rodeados por criaturas com trajes multicoloridos e vocabulário de marcianos. Embora não fôsse­mos hippies, mantínhamos um re­lacionamento cordial. Interagíamos numa boa. Tínhamos que estar ali. A Cacau era a única dona de “bote­co” que vendia bebida alcoólica para menores, na clandestinidade. Bem próximos de nós estavam Zó e Zi. Ela acenou, dizendo: “e aí, tio”? Care­tas, independente da idade, para eles eram tios.

Na vitrola da Cacau “rolava” um vi­nil de Janis Joplin, quando a Zi pediu um “martelinho”. A bebida consistia em limão, com casca, e vodca batidos no liquidificador. A Cacau iniciou um diálogo:

- Cacau: e aí, Zi? Soube que foste para a fazenda do pai do Marquinho.

- Zi: é... foi...

- Cacau: foi?!

- Zi: foi contrastante, cara! Visce­ralmente contrastante. Um cenário de sonho, tá sabendo? Só que pintou função, valeu? Essa é a merda, cara. Sempre pinta função, tá ligada?

- Cacau: o Zó também foi?

- Zó: pô, cara! Espaços verdejan­tes... Extensões recobertas por...

- Zi: muita bosta de vacas, tá liga­da?

- Zó: olha o cara, meu! São espa­ços recobertos por adubo orgânico, tá ligada, Cacau? Na extensão de toda aquela amplitude orgânica repousam os tenros cogumelos. Viveiros de co­gumelos! Enquanto pisava em bosta de vacas vi o sol se pondo no hori­zonte, tá ligada?

- Cacau: e depois, Zó?

- Zó: depois... Sabe... Acho que nem sei mais. Sabe... Às vezes fico assim... Sei lá. Sabia? Há momentos, em que sei tudo. Em outros, nada sei. Sabia? Enfim; não sabemos tudo. Tá sabendo? Sei lá...

- Cacau: porra, Zi. Você ouviu isso? Aí fica difícil, né?

- Zi: se liga; tá sabendo, Cacau? Passa tudo para o antônimo. Aí você vai compreender. O “modus operan­di” do cérebro do Zó é algo drastica­mente radical, tá ligada? Costumo fa­zer a leitura do que ele diz, passando tudo para o antônimo, valeu? Aí fica tudo absolutamente claro. É uma fun­ção, cara.

- Cacau: nossa, Zi!

- Zi: porra, Cacau. Toda essa merda é domínio da ancestralidade, tá sa­bendo? Sobre nossos ombros repou­sa toda a carga do choque de civili­zações e da multiplicidade cultural. Nossos pais são os culpados. Com seus ternos bem cortados, suas calças com vincos perfeitos e gravatas de cores neutras. Já sou adulta. Tenho 15 anos e sou uma mulher resolvida. Nossos pais falam que temos que fa­zer isso, fazer aquilo... Pergunto-te: por quê? Um dia troquei com meu pai palavras ásperas: “cara, porque você diz que tenho que fazer isso, fazer aquilo”... Sabe o que ele respondeu, Cacau? “Filha; por que, não sei. Mas tem que fazer. É lei”! Percebe, Cacau? O cara me diz que tenho que fazer, mas não sabe por que devo fazer. Cara! Fico chocada com o determinis­mo da sociedade contemporânea. Na Idade Média, ao menos, te diziam por que estavam te jogando na fogueira, tá ligada? Manda outro “martelinho”, Cacau.

- Cacau: nossa, Zi!

- Zi: sabe, Cacau... Quando eu era pequenininha, nutria o ambicioso projeto de dominar o mundo. Depois, reconsiderei. O mundo é muito am­plo, e a concorrência é brutal. Muita gente quer dominar o mundo, cara. Assim, estabeleci uma nova meta. Decidi que iria dominar só um peda­ço do mundo. Ainda não consegui. Mas já aprendi a vomitar. Eca!

- Cacau: porra, Zi. Seu vocabulário me arrepia. Confesso que às vezes, me assusta. Mas... Estamos nos des­viando do eixo da conversa. Fale de seus momentos lá na fazenda do pai do Marquinho.

- Zi: começou mal, cara. O primei­ro dia foi uma função, tá ligada? O Marquinho se esqueceu de levar as barrinhas de doce de coco. Cara! Rolou uma neura, tá ligada? Costu­mamos mastigar as barrinhas junto com os cogumelos, valeu? Corta a acidez e mantém as propriedades nu­tritivas, tá ligada? O segundo dia foi outra função, tá ligada? O Marquinho queria paixão, e eu queria banho de cachoeira. O sexo, às vezes, é uma coisa brochante, sabe? É reducionis­ta. Comprime o espírito, tá ligada? Quando não estou a fim, não estou. Aí, ele falou: “ou ela ou eu”.

- Cacau: e aí, Zi?

- Zi: fiquei com ela, claro. Achas que iria trocar a cachoeira por um ho­mem? O simplismo é coisa de nossos pais. Devo dizer que fiquei absoluta­mente indignada, frustrada, triste... Ele falou como falam os nossos pais. Foi patético! Visualizei o Marquinho de terno bem cortado, calça com vin­co perfeito e gravata de cores neutras. Então, vomitei. Eca!

- Cacau: nossa! E depois, Zi?

- Zi: depois do banho de cachoeira, queria mergulhar, tá ligada? Subi no alto do penhasco, onde brota a nas­cente, e mergulhei...

- Anacleto: mergulhaste na água?

- Zi: olha o cara, meu! Mergulhei no espaço vazio, cara. Foi um mer­gulho na gravidade, tio. A água viria depois. Foi a consequência causal, tá ligado?

- Anacleto: sim. Mas... Depois, ca­íste na água?

- Cacau: meu pai tá vindo aí, pes­soas. Está suspensa a bebida. Descar­tem, por favor!

O pai da Cacau chegou, trajando um terno bem cortado, calça com vinco perfeito e gravata de cores neu­tras. Até nós, simples “biriteiros”, o achamos antiquado e deplorável. Um ser desprezível! A Zi, drasticamente pálida, disparou em direção ao lava­bo. Do balcão, pudemos ouvir o es­trago: arghhh; arghhh; arghhh; eca!

“Ainda bem que já aprendi a vomi­tar. Eca”!


Conteúdo Patrocinado


Comentários:

Deixe um comentário:

Somente usuários cadastrados podem postar comentários.

Para fazer seu cadastro, clique aqui.

Se você já é cadastrado, faça login para comentar.

ENQUETE

O que você acha das restrições para a pesca artesanal da tainha?

Acho que os pescadores e surfistas podem entrar em acordo

Apoio as restrições, é uma época do ano apenas e a prioridade é dos artesanais

Nem sabia que existiam regras pra proteger a pesca da tainha

Não sei opinar

Proibir embarcações motorizadas ok, mas o surfe é um exagero



Hoje nas bancas

Confira a capa de hoje
Folheie o jornal aqui ❯


Especiais

Lira e Rueda negociaram gado enquanto articulavam federação de PP e União Brasil

NEGOCIAÇÃO

Lira e Rueda negociaram gado enquanto articulavam federação de PP e União Brasil

Autorização de limpeza de pasto mascara e 'legaliza' desmatamento ilegal

meio ambiente

Autorização de limpeza de pasto mascara e 'legaliza' desmatamento ilegal

O recomeço de Muçum, a cidade que foi três vezes levada pelas águas

RESILIÊNCIA

O recomeço de Muçum, a cidade que foi três vezes levada pelas águas

Minoria dos promotores acha que fiscalizar a polícia é prioridade do Ministério Público

PESQUISA

Minoria dos promotores acha que fiscalizar a polícia é prioridade do Ministério Público

Como a guerra entre grupos criminosos fez a violência explodir na Zona Oeste do Rio

SEGURANÇA

Como a guerra entre grupos criminosos fez a violência explodir na Zona Oeste do Rio



Colunistas

Mais uma polêmica do senador

JotaCê

Mais uma polêmica do senador

Vitória para valorizar

Show de Bola

Vitória para valorizar

Peruanos revoltados

Coluna Esplanada

Peruanos revoltados

Vacina contra a gripe

Charge do Dia

Vacina contra a gripe

SC leva demandas para “Marcha a Brasília”

Coluna Acontece SC

SC leva demandas para “Marcha a Brasília”




Blogs

Ana Côrte fala sobre saída do Corinthians

A bordo do esporte

Ana Côrte fala sobre saída do Corinthians

Renatinho Júnior irá presidir o Manda Brasa de Camboriú

Blog do JC

Renatinho Júnior irá presidir o Manda Brasa de Camboriú

Cuidado! Os metais pesados nos intoxicam, saiba o que fazer.

Espaço Saúde

Cuidado! Os metais pesados nos intoxicam, saiba o que fazer.






Jornal Diarinho ©2025 - Todos os direitos reservados.