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Só pra dizer que já falei com as flores


Botei os pés na rua. O sol ilumi­nava Itajaí!

Após minha caminhada pela Beira-rio, próximo ao meio-dia, dei uma passada pela floricultu­ra. Precisava comprar adubo para minhas plantinhas. Havia pouco movimento no interior da loja. As pessoas se concentravam no bal­cão. Quando entrei, segui por um corredor lateral que dava acesso a um jardim interno. Uma estufa de rara beleza. A vegetação, densa, era composta de todos os tipos de flores... Samambaias... Espécies exóticas! Apanhei o saquinho de adubo e distraí-me, observando as flores. Quando, minutos depois, dirigi-me ao balcão para efetuar o pagamento, já não havia mais ninguém no local. As atendentes saíram para o almoço e fiquei pre­so na loja.

Depois da primeira hora preso, o excesso de calma começou a virar preocupação. Comecei a an­dar de um lado para outro, entre as flores. Uma pergunta que não queria calar começou a martelar meu cérebro: “hoje é sábado. Será que abrem após o almoço”? Meia hora depois, comecei a falar sozi­nho e a ouvir vozes:

Rosa: acho que a Beatriz saiu com as meninas e trancou alguém aqui.

Gardênia: sim, estou ouvindo uma voz. A Beatriz foi almoçar com as meninas e fechou alguém

Tulipa: nossa! As meninas fo­ram almoçar com a Beatriz e prenderam uma pessoa aqui

Cravo: vocês estão dizendo que a Beatriz saiu pra almoçar com as meninas e trancafiou alguém na loja?

“Estou com febre”! Só pode ser isso, pensei. Mas tudo bem. Como não havia testemunhas... Resolvi responder: “sim; a Beatriz foi almoçar com as meninas e me trancou na loja. Creio que não me viram”.

Rosa: calma! Somos gente de bem. Estás entre amigos. Onde moras?

“Moro ali, pertinho do Fórum”.

Rosa: ouviram isso? Mora ali, pertinho do Fórum.

Gardênia: mora ali, pertinho do Fórum? Então é nosso vizinho.

Tulipa: nossa! Ficou preso e mora ali, pertinho do Fórum.

Cravo: será que ouvi direito? Vocês disseram que ele mora ali, pertinho do Fórum? Somos vizi­nhos, então?

“Porra! Eu estou preso aqui e vocês ficam discutindo onde moro? Que merda”!

Rosa: respeite-nos! Somos gen­te de bem. Aqui não admitimos esse vocabulário vulgar. Se vai falar assim, pode se retirar. Rezo todos os dias, pedindo para não ser levada por uma pessoa assim. Abominamos a conspurcação ver­bal. Somos flores, não percebes?

Gardênia: é isso mesmo. Peço que se retire imediatamente. Não gostamos de pessoas de tempera­mento sórdido. A linguagem chu­la está associada ao álcool e taba­co. Somos gente de bem. Deus me livre ser levada para a casa de um indivíduo desses. Não percebes que somos flores?

Tulipa: retire-se, por favor! Te­nho uma amiga, a violeta, que foi levada para a casa de uma pessoa desprezível, como você. Além de ter que suportar o consumo de ál­cool e tabaco, a coitadinha convi­ve com a poluição sonora. Uivos, gritos e gemidos provocados por sexo primitivo costumam varar a noite. Somos gente de bem. Estás falando com flores, compreende?

Cravo: sim, vai ter que se reti­rar. Não pactuamos com a vulga­ridade. Em que mundo você vive? Ainda não percebeu que somos flores? Repudiamos veemente­mente toda sorte de impropérios. Somos gente de bem.

“Desculpem. Não quis ofender. Como vou me retirar se estou pre­so? Desculpem! Não posso me re­tirar. Estou muito preocupado. Se a Beatriz e as meninas não vierem após o almoço, só vou ser solto na segunda feira. Sem água e ali­mentos, minha sobrevivência vai ficar drasticamente comprometi­da. Também vou ficar sem álco­ol, tabaco e sexo. Em que mundo vocês vivem? Não percebem que sou humano? Não sou gente de bem”.

Rosa: calma! Isto, de fato, já aconteceu no passado. Comiam feijoada e só vinham na segunda. Agora, não mais. A Beatriz está de regime. Não come mais feijo­ada. Já vai abrir aquela porta e soltar você.

Gardênia: isso mesmo. A Bea­triz e as meninas estão de regime. Não comem mais feijoada. Já de­vem estar chegando pra abrir a porta. Vais ficar solto.

Tulipa: sim, não comem mais feijoada. A Beatriz e as meninas já estão a caminho e vão abrir a loja. Estão de regime. Você logo estará na rua.

Cravo: as meninas também es­tão de regime? Não sabia. Então, pode ficar tranquilo. Já estão che­gando e vão abrir a porta. Não comem mais feijoada. Já vão te soltar e... Cuidado! Não mexa um músculo da face, ouviu? Não res­pire. Agora, muito devagar... Dê um passo à frente, sem olhar para o lado. Outro passo, devagar... Ufa! Pode olhar agora. Ela ia te morder.

“Meu Deus! Ninguém merece. Ela quem”?

Cravo: a planta carnívora. Não está vendo, ali? Não é má. Faz parte da natureza dela. Somos gente de bem.

Rosa: olhem lá! A Beatriz e as meninas acabam de entrar. A por­ta está aberta. Vá falar com ela. Você está livre. Mora ali, pertinho do Fórum... E ficou fechado aqui. Foi algo inusitado.

Gardênia: as meninas abriram a porta e acabam de entrar com a Beatriz. Corra para a liberdade. Ficou preso e mora ali, pertinho do Fórum. Foi algo inusitado.

Tulipa: a Beatriz entrou junto com as meninas. Já acenderam as luzes, vê? Ficaste trancado e moras ali, pertinho do Fórum. Vá sentir o gostinho da liberdade. Foi algo inusitado.

Cravo: acabam de entrar, jun­tas, a Beatriz e as meninas. Já es­tão no balcão. Vá! Mora ali, per­tinho do Fórum? Que sorte, hein? Logo vai estar no conforto do lar. Foi algo inusitado.

Despedi-me de minhas amigas e fui falar com a Beatriz.

Beatriz: foi algo inusitado.

Enquanto caminhava para a li­berdade, ainda pude ouvir a rosa exclamar: “que falta de originali­dade, Beatriz! Todo mundo aqui já disse isso”.

Botei os pés na rua. O sol ilu­minava Itajaí!


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