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Saudades da enchente


Parece piada ou um comentário egoísta de quem, como poucos, não foi atingido diretamente pela tragédia, né? Mas o fato é que a calamidade tem a capacidade de extrair do homem o pior e o melhor de suas entranhas.

É incrível como diante das adversidades e aparente impotência individual as pessoas se tornam sensíveis e passam a olhar para os outros como ‘seres humanos’. O preconceito, a soberba, a altivez e o luxo somem repentinamente, o individualismo dá lugar à solidariedade e os olhos do homem passam a ter mais valor que o que calçam os seus pés.....

Num grande supermercado da amada cidade, um dia antes do alagamento, o clima era de tensão e dúvida... ‘‘vai encher, não vai? Até aonde vai a água? Vai faltar comida? E água?’’ Porém, ao mesmo tempo, na fila do caixa, uns se dividiam com os outros... ‘‘Onde vou deixar o carro, tem vaga para o teu... se precisares de ajuda para levantar os móveis, conta comigo...” A cada frase, a cada gesto, a cada atitude de caridade, era uma distinta atmosfera.

No sábado (da enchente), pela tarde, fui com o meu amado filho, Davi, dar uma olhada no lado baixo do meu querido bairro, Cordeiros, o popular Brejo. Pessoas que eu nunca vi na vida me abordavam querendo saber se tinha sido atingido, onde estava alojado, se precisava de algum socorro. Famílias inteiras se concentravam no posto de gasolina na maior euforia, churrasco na brasa, música sertaneja, etc... Era todo mundo bem-vindo, parentes ou não. O Cordeiros era uma grande família, preocupada, mas unida. O trânsito tinha cara de feriado, algumas “mercedinhas” com umas mudanças e uns curiosos, mas tranquilo. No prédio onde moro todos se preocupavam em economizar água, emprestando vasilhames para o vizinho armazená-la. Enfim, Itajaí vivia como se num espírito natalino extremo.

Por fim as águas começaram a baixar já no domingo, e na segunda praticamente sobrou a lama, desta vez era um na casa do outro, compartilhando a limpeza do imóvel em troca do uso da “Wap”.

Essa semana voltei ao mesmo local para ver o estado das ruas, se tinha muitos móveis na frente de casa. É incrível como esse povo se reergue rápido, rua limpa, casas lavadas, comércios faturando. Faces fechadas, gente com pressa, trânsito caótico, a agonia do semáforo, buzinas intermitentes; cumprimentei um casal que quase me atropelou de bicicleta, me xingaram com os olhos. As vozes perderam espaço para o ronco de motores e buzinas. No mercado o assunto era um cigarro, ou os reclames da demora da fila do caixa; no prédio, os coredores e escadarias vazios e frios.

A natureza clamou, o homem acordou, porém não levantou-se, voltou a dormir. Voltou a tratar seu semelhante como concorrente, não digo com selvageria, pois a selva é justa e sustentável. O indivíduo voltou e no posto de gasolina sobraram só quatro ou cinco tijolos, um resto de brasa seca sobre o gramado, como se contasse a história do dia em fomos melhores diante da dor. Nessa hora, como um apaixonado por essa cidade e essa gente, com um misto de compaixão e ira, não me envergonho em dizer: já dá saudade da enchente!

* O autor é jornalista

 


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