Carpintaria naval
Arte da fabricação e reparo de barcos de madeira resistem aos novos tempos
Carpinteiros tradicionais se mantêm fiéis ao conhecimento ancestral
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
A tradição ancestral de fabricar barcos para garantir o sustento às margens do rio Itajaí está passando por um momento de transição tecnológica, mas também de resistência cultural. A velha guarda encontra dificuldade em repassar os conhecimentos de pais e avós, mas há bons exemplos de jovens determinados em seguir o legado e se adaptando às novas demandas.
José Olavo Coelho, 79 anos, o Zé Olavo, é um dos carpinteiros de ribeira que se mantém na ativa, após 60 anos de labuta. Dizem em Navegantes que ele é recordista em fabricar barcos de pesca.
“Foi o Nino da Femepe que disse que eu sou o caboclo com mais barcos de pesca no currículo. Eu nunca contei, mas em 1981 a gente construía 15 barcos ao mesmo tempo. Hoje não passa de cinco”, recorda. Segundo ele, a atividade diminuiu porque a pesca perdeu espaço para a construção civil e o porto, e por causa do alto custo e escassez de matéria-prima. Nas últimas décadas houve uma preocupação maior em resguardar as florestas que fornecem madeira de lei. “Temos barcos que estão há dois anos em construção porque o comprador ficou sem recurso pra terminar, o preço da madeira triplicou nos últimos anos”, revela.
O Estaleiro do Osvaldo está no mesmo endereço, no bairro São Domingos, desde 1970. Lá, Zé Olavo e 26 carpinteiros mantêm a produção de barcos como traineiras, atuneiros e camaroeiros, mas também de turismo, além de fazer reparo nas embarcações. Segundo ele, as técnicas são semelhantes, o que muda é o acabamento mais refinado nos veleiros e iates.
Zé Olavo afirma que de 50 a 100 pessoas trabalham por dia em seu estaleiro por causa dos profissionais terceirizados nas áreas de mecânica, hidráulica e elétrica. Já em relação à sucessão, ele conta que os dois filhos não quiseram seguir a profissão. “Quando eu me for, creio que o Heitor e o meu sobrinho Roberto vão seguir no estaleiro. Mas não basta ser carpinteiro, é preciso saber construir, e é por isso que todo dia ainda estou lá”. Também porque, para ele, um povo sem conhecimento do passado é um povo sem possibilidade de futuro.
Filhos seguiram passos dos pais na carpintaria
A geração de carpinteiros na casa dos 40 anos lida com barcos desde criança. Eles foram testemunhas das transformações que a profissão passou e da redução de profissionais à medida que trabalhar na construção civil e no porto se tornou mais atraente. Mas, cada um à sua maneira, continua o legado trazido pelos colonizadores portugueses, no século 18.
Albeci Gonçalves, 47, aprendeu o ofício com o pai Valdelirio, 74, que ainda trabalha com o irmão Marciel. Por anos, ele trabalhou com o pai, mas agora tem um estaleiro próprio no Gravatá, onde fabrica barcos para clientes de SC, SP e RS. “Meu pai está aposentado, mas não parou porque tem prazer em ser carpinteiro. Se parar, entra em depressão”, acredita.
Ele começou na atividade com 16 anos. Quando chegava encomenda, ele ia com o pai e o irmão ajudar a catar prego, cortar madeira e limpar o barco em formação. Depois que casou, Albeci foi trabalhar com o sogro Cantenor, exímio carpinteiro, já falecido. Ele acredita que para ser um bom profissional não basta aprender, mas ter um talento genuíno.
“Tem pessoas que aprendem e tem pessoas que têm o dom, e eu creio que tenho esse dom. Tudo que se pode fazer com madeira sai bem feito. Já fiz mais de 50 barcos na vida”, conta.
Conhecimento e ferramentas de toda uma vida
De 13 irmãos, Fabiano Veloso, 39, é um dos únicos que continua trabalhando a madeira para dar forma ao barco que mantém em seu galpão, junto com as ferramentas herdadas do pai Nizioni. Os demais irmãos se tornaram mecânicos, eletricistas ou migraram para a indústria naval e construção civil. Ele próprio começou a estudar engenharia civil em Joinville, aproveitando o boom do setor. Mas não abandona a paixão do pai, que também é sua.
“A gente foi criado vendo o pai trabalhar e é uma pena que tão pouca gente continue no ramo, apesar de saber que é muito mais rentável trabalhar na construção civil”, admite. Ele conta que ficou difícil para os pequenos se manterem na atividade por causa de exigências técnicas. “Como a pesca é extrativista, a gente entende que precisa compensar a natureza, mas colocar GPS e toda a tecnologia cobrada do pescador, acaba ficando mais caro que o barco”.
Resgatar saberes ancestrais e dar melhores condições de trabalho aos pescadores e carpinteiros de Navegantes é outra missão que Fabiano se comprometeu durante o tempo em que atuou na Secretaria Municipal da Pesca. Através de recursos estaduais e locais, ele ajudou na criação do estaleiro municipal, no bairro Pontal, além de equipar com trator para puxar os barcos, veículo para transportar os pescadores e um escritório instalado num contêiner.
Fabiano também cadastrou a galera para montar uma base de dados e regularizar a profissão. E tem um projeto de formar novos pescadores e carpinteiros nas escolas. O “Navegando no conhecimento” estreou na localidade Carvão. “Essas crianças nem conhecem o mar, muito menos de onde vem o camarão. Levamos um barco, tarrafa, timão, elas adoraram”, relata.
O barco em miniatura é outra herança do pai, que tem duas peças expostas no Museu do Mar de São Francisco do Sul. A próxima missão é ingressar na engenharia ambiental. “Eu quero levar o conhecimento prático para o meio acadêmico. Quem nunca atuou na área acaba tomando decisões sem ter ideia do impacto que tem sobre a comunidade”, completa.
Casal começou na garagem de casa e hoje comanda 20 funcionários
Com menos de 40 anos, Heron Silverio Figueira e a mulher Silvana conseguiram um feito notável: a partir de uma pequena oficina na garagem de casa se tornaram referência na fabricação e reforma de embarcações de lazer. Hoje o casal tem três unidades do Estaleiro Silverio, a última construída em Tijucas para fabricar catamarãs de 45 pés, que chegam a custar R$ 6 milhões. “São barcos que parecem casas com 120m²”, revelam.
Tudo começou em 2017 quando Silvana, designer de interiores, uniu seu conhecimento com o de Heros, marceneiro. Eles começaram a reformar barcos e os clientes saíram tão satisfeitos que logo precisaram alugar um terreno no bairro São Domingos. “Nosso diferencial é o design interno. O cliente fica encantado com o resultado, diz que parece uma joia”, conta Silvana.
Para continuar crescendo, eles também criaram uma escola de capacitação dentro do estaleiro que dá oportunidade a muito imigrante chegar à cidade já com a perspectiva de emprego. “Eles chegam com muita vontade de trabalhar e aprender. E não só os homens. “Elas são mais detalhistas e se saem bem tanto na pintura quanto na área administrativa”, explica.
Outra sacada do casal foi se adaptar aos novos tempos, em que a madeira é mais escassa e cara. “A natureza está mostrando que é preciso encontrar alternativas para continuar fazendo barcos com novos materiais, como fibra, que é mais bem leve. Hoje em dia é difícil um barco ser 100% de madeira, ela é mais usada hoje no casco”, conta.
A empresa também aproveita a mão de obra especializada de carpinteiros locais, que capacitam os demais. E para o ano que vem, planejam lançar o veleiro Samba, no Carnaval. “Cada vez mais os estaleiros fazem barcos maiores e mais caros. Queremos desmistificar a ideia que velejar é apenas para os ricos. Queremos fabricar barcos para gente como nós”.
Marina Itajaí se consolida como centro de turismo náutico
Desde 2016, a Marina Itajaí se tornou um porto seguro para centenas de velejadores, que escolheram a cidade para recarregar as baterias após uma longa viagem ou passar uma temporada. A parada é estratégica para fazer a manutenção do barco, que sofre com as intempéries e o desgaste do uso, especialmente para quem vive sobre as águas.
“É como fazer a revisão periódica de um veículo esportivo. Como são embarcações de alto custo, fazer a manutenção garante a segurança e o valor do bem que antes ficava na garagem, sem a segurança que a marina proporciona”, explica o diretor Carlos Gayoso.
Para fazer a guarda e manutenção das embarcações, a marina conta com equipamentos que podem movimentar barcos de até 75 toneladas (80 pés). Entre os serviços oferecidos pelas empresas terceirizadas estão pintura do fundo e reparos nas partes metálicas abaixo da linha d'água, segurança, prevenção do casco e uma revisão completa nos motores.
“Todos os dias, a marina recebe de 300 a 400 pessoas entre clientes e profissionais de mecânica, hidráulica, pintura, acabamento. São mil empregos diretos e indiretos”, garante. Estão presentes no local empresas como Carioca Fibras, Nova Onda, Mar Aberto e Ancor.
Para conquistar o Selo Azul (ISO 1401), a marina foi equipada com 700 m² de painéis solares (energia limpa), utiliza 80% água de reuso e coleta 100% do óleo combustível.
Carlos conta que 60% dos clientes são empresários do Vale do Itajaí, mas tem aparecido cada vez mais clientes do eixo Rio-SP, que passaram a trabalhar em home office e moram dentro do barco. “Sem falar nos que compram imóveis na cidade para ver seu barco da varanda”, revela.
A internacionalização da Feira Náutica também deu mais visibilidade à cidade, assim como aumentou o volume de negócios, de R$ 50 milhões (2016) para R$ 200 milhões. E a marina está prestes a dar um novo salto com a construção do Shopping Boulevard. O projeto orçado em R$ 100 milhões terá 30 mil m² e vai abrigar 120 lojas, entre restaurantes, lojas de equipamentos marítimos e de lazer. A inauguração é para o verão 2026/2027.
Fibrafort é fábrica com sede em Itajaí
A crise de 2014 e o período de estagnação durante a pandemia afetou duramente as grandes empresas de construção naval. Quem não sentiu a crise foram as médias empresas que apostaram no turismo náutico, e seguem batendo recorde de vendas e fazendo planos de expansão para competir com marcas internacionais.
Este é o caso da Fibrafort, fundada em 1990. A empresa, com sede no bairro Espinheiros, em Itajaí, se prepara para expandir e aperfeiçoar a produção de embarcações esportivas e de luxo numa área mais moderna. A intenção é aumentar a produção para exportação de 10% para 25% até 2030 e, principalmente, aumentar o valor agregado dos modelos, atualizando o parque fabril e qualificando a mão de obra.
“Hoje produzimos 15 barcos de 21 pés por mês, mas apenas quatro de 36. Na nova unidade, vamos focar nos produtos de maior excelência para aumentar as exportações, especialmente para os EUA, o maior mercado mundial”, afirmou a gerente de marketing, Barbara Martendal.
São 13 modelos de barcos, cujos preços vão de R$ 200 mil a R$ 4 milhões. Em 34 anos, a Fibrafort já vendeu 18 mil unidades e o número de funcionários saltou de 50 para 400. Para qualificar a mão de obra, foi montado um Centro de Treinamento Operacional em parceria com o Senai. "Estamos sempre investindo no pessoal, no maquinário e trazendo tendências para encantar o cliente”, conta.