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Olhos de Cristina


A criança agarrava o pedaço de pão como um cão agarra sua presa em dias de caçada. Olhei a cena e não tive como não me prender. Meu avô me puxava pelo braço e, pelo que constatei, ele não viu a criança esfomeada com um capuz marrom na cabeça. Meu avô andou mais alguns passos e parou na calçada para conversar com um velho amigo seu vendedor de quinquilharias. Contrariando as or­dens do meu avô, que era a de não largar sua mão quando estivesse na calçada, eu o fiz e voltei-me para onde a criança estava. Só então percebi que era uma menina e que seus olhos me prenderam. Ela estava acompanhada de seus pais, dois mendi­gos que comiam restos de frutas que, certamente, haviam encontrado no mesmo lugar em que ela en­contrara o pão seco.

Senti uma sensação horrível, era como se eu es­tivesse no lugar daquela menina. Tentei falar com ela, mas minha voz não saiu. Desconfiados, os dois mendigos me olharam e eu fiquei sem saber o que fazer, completamente sem graça. Fiz menção de sair dali, mas senti-me amortecido. Minhas per­nas estavam inertes, paralisadas. Por um momento muito curto ela tirou o pão da boca, deixou a cara sisuda de fome de lado e disse-me:

“Cristina”.

“O que?”, sussurrei, estranhando o som da mi­nha voz.

“Cristina, meu nome!”, ela tornou a dizer e fez menção de um sorriso.

Quis sorrir de volta, mas não consegui. Tudo nela era sujeira e fome, tudo nela era tristeza, exceto os olhos. Eram verdes, expressivos, eram olhos de amor, de quem tem vida. Cristina ficou com seu pão seco, acompanhada de seus pais que já partiam para outras frutas podres e eu fui arrastado pelo meu avô, ouvindo um belo sermão por ter largado sua mão e voltado alguns passos.

“Você me deu um susto, filho. Não pode largar a mão do vô. Tem muita gente esquisita nas ruas”, falou, carinhosamente, mas de forma firme.

Voltamos para casa. Era sábado e tinha um belo almoço preparado pela minha avó. Meus tios, pri­mos e irmãos estavam presentes. Jogavam bola no quintal, mas daquela vez eu não participei das brincadeiras. Os olhos de Cristina me perseguiam. A situação de Cristina me atormentava.

“Como será que ela dorme? Onde ela mora? Será que vive nas ruas? Será que os pais dela a amam?”, me peguei pensando muito naquele dia e em muitos outros que se seguiram. Cristina era parte de mim, Cristina tinha minha alma em seus olhos, Cristina era meu lado feminino, algo puramente divino.

O tempo voa, principalmente quando queremos que ele pare. Voou para mim como uma flecha. Cresci como uma vareta, estudei, levei tombos, me casei, separei-me, tive um filho e entrei para a política. Não sei por que cargas d’água, quando me dei conta, eu estava envolvido com a política e, aos olhos dos outros, era bem sucedido. Acho que entrar para a política foi uma maneira que en­contrei de me redimir de uma culpa que eu não sei por qual motivo, mas eu carregava desde que vi Cristina. Mas em mim, eu sentia um vazio horrível, parecia que eu sempre estava devendo algo para a sociedade, para as pessoas. Eu precisava fazer cada vez mais, era um apostolado. À noite, depois do banho, quando o calor infernal da capital pa­recia entrar por meus poros e diluir minha alma, meus demônios afloravam. Em momentos assim, meu único refresco, minha única salvação eram os olhos de Cristina, aqueles olhos que vi por tão pou­co tempo, mas que foram responsáveis pela minha existência durante aqueles anos todos. Eles eram verdes, eu sei, mas para mim, eles tinham todas as cores existentes no mundo, as mais belas cores, as cores da vida...

Depois de uma longa discussão no plenário e de ter que escrever relatórios até muito tarde, decidi ir para casa a pé. Eu odeio usar terno, mas devido às exigências do trabalho, tenho que fazer isso todos os dias. Paletó nas costas, gravata frouxa, eu cami­nhava sem rumo. Ia para casa, eu sabia, mas sem a menor vontade. Mesmo sabendo o caminho de casa, eu estava completamente sem rumo. Eu cami­nhava e não ouvia mais nada. Os carros passavam ao longe, o mundo parecia tão distante de mim. Eu simplesmente ia.

Senti um puxão em meu paletó que estava nas costas. Voltei-me rapidamente assustado. Era como se alguém me tirasse de um transe.

“Deputado!”, uma voz me disse.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, não tive dúvidas. Vi aqueles olhos. Era noite, mas eles brilhavam mais que a lua e as estrelas. Eram os olhos de Cristina.

“Cristina?!”, disse em tom de pergunta e de ex­clamação.

“Como sabe meu nome?”, ela perguntou.

“Eu sei muito de você. Na verdade você e eu so­mos um. Mesmo que ache isso louco demais, mas é assim que é”, falei e não resisti. Dei-lhe um abraço e notei que ela também sentiu o mesmo que eu, embora um pouco surpresa ou assustada; não sei direito. Cristina era parte de mim, Cristina era eu mesmo.

Caminhamos até um bar tido como Cult. Pedi um uísque com gelo. Cristina pediu vodka. Tomamos lentamente e eu a observava enquanto ela contava sua história.

“Eu agora me lembro do menino feio que che­gou perto de mim e ficou paralisado. Não leve a mal, mas você era muito feio mesmo, o contrário de hoje. É um homem lindo”, falou e eu me senti gelado. Cristina continuou. “Nós tínhamos sidos despejados de um barraco e meu pai perdeu o ser­viço de jardineiro de uma escola particular. O lugar onde morávamos era um antigo terreno de serraria e tinham transformado aquilo em um loteamento de luxo. Hoje tenho uma casa lá, mas está aluga­da. Naquele dia em que você me viu, lembro que era um sábado e havia uns membros religiosos pre­gando pelas ruas. Conversaram com meus pais e pediram se queriam sair das ruas. Meu pai disse que sim e nós os seguimos. Ficamos mais de um mês em um albergue e recebemos o melhor trata­mento de nossas vidas. Meu pai arrumou trabalho como jardineiro na sede de um clube de futebol. Minha mãe passou a trabalhar na cozinha, pois o clube formava as categorias de base e forneciam alimentação e todo tipo de assistência. Eu voltei para a escola, estudei, fiz faculdade de jornalismo e hoje trabalho na assessoria de imprensa aqui da câ­mara dos deputados. Eu sempre admirei seu trabalho, deputado. Sempre te achei familiar, mas jamais, em tempo algum, poderia imaginar que você era aquele menino feio que me olhou e ficou tremendo quando eu comia um pão seco que ganhei de um atendente de bar”. Cristina falou tudo isso sem que eu dissesse uma única palavra. Enquanto ela bebia lentamente sua vodca, eu perguntei:

“Por que você me chamou agora há pouco? Por que me puxou pelo paletó que estava em minhas costas?”

“Nossa! Eu ia esquecendo! Puxa vida! É que o se­nhor, quer dizer, você, deixou cair seu celular na saí­da. Eu vi que era seu e guardei. Só queria devolver”, falou e entregou-me o aparelho já bem surrado.

Peguei o telefone e apertei a mão de Cristina en­tre as minhas. Sem que me desse conta e não ligan­do nem um pouco para meu cargo público, a beijei ali, naquele bar sob os olhos de muitos clientes que aplaudiram nosso gesto. Cristina correspondeu ao beijo e senti, naquele instante, que o que estava guar­dado dentro dela há muito tempo sem que ela sou­besse, quiçá até em outra vida, aflorou. Cristina me acompanhou até minha casa naquela noite e, depois daquilo, me acompanha para a vida toda. Cristina é definitivamente parte de mim.


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