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Veneza


Não sou muito ligado na teoria das vidas passadas, mas sempre que volto à Veneza, mergulhando fundo nos seus becos, atravessando canais, “salizadas” e “fundamentas”, perdido em meio aos labirintos da cidade, tenho a impressão de que já vivi ali em outra época.

Diz a lenda que Veneza é a cidade predileta de Deus. Ele passa longe do Vaticano, há séculos abalado nas intrigas do poder, nas maledicências sussurradas em voz sibilina. E porque é a predileta, conservou-a assim, intacta, lembrança de um tempo que demora a passar, de um universo onde existia uma certa ordem.

Preferia que a cidade não fosse tão procurada pelos turistas. O formigueiro humano se arrasta em todas as estações, trazendo atrás de si malas e bagagens, no vai e vem da Piazzale Roma até a Piazza San Marcos, se acotovelando no Rialto, na Accademia, em agrupamentos ruidosos conduzidos por uma guia nervosa, em casais cheios de amor para dar e, às vezes, em espectadores solitários, de boca aberta, diante dos pallazos, igrejas e monumentos, em meio às cores solares, às colunetas elegantes, às paredes envelhecidas de argila.

Mas como reclamar dos turistas se sou um deles, e dos mais apaixonados, se retorno ansioso ao regaço, no mínimo a cada quatro ou cinco anos? Como reclamar, se me provoca certo mal estar, ouvir alguém, com ares de viajante assíduo, falar do “cheiro” da cidade?

Não tenho nenhum gosto especial. Apenas percorro as ruazinhas, atravesso os “sottoportegos”, ando sem destino, seguindo o vento, o ruído estridente de um estaleiro, o aroma fumegante dos frutos do mar, a algazarra universal das crianças na escola.

Paro, vez em quando, na vitrina das lojinhas de máscaras (entro, às vezes), para olhá-las de perto, maliciosas, engraçadas e assustadoras, cores ardentes, tão iguais e tão diferentes entre si, pequenas obras de arte trabalhadas em papel machê pela mão do artista.

Tanto faz descobrir novos sítios, onde se aninham os gatos de Veneza, belos espécimes de pelo longo, preguiçosos, tratados a pão-de-ló por venezianos de bom coração. Tanto faz se o lugar é familiar, porque neste caso, pode-se parar diante da fonte de água limpa e apreciar a forma da torneira de onde ela flui e brilha ao sol: o leãozinho em bronze, a gárgula de cara boa, o anjo de olhinhos voltados para o céu.

Não sei o nome destes esconderijos indecifráveis. Não é de geografia que me ocupo, mas da aura urbana, de imaginar o que rolou na noite medieval, o sorriso feliz de um encontro inesperado, uma paixão sorrateira e um amor desfeito, um susto na sombra, um ato solidário de compaixão.

Veneza é para ser vista e revista, sentida e amada. As construções barrocas falam. Falam os templos soberbos, os afrescos, as pinturas de um tempo de esplendor e glória. O cenário medieval envolve e emociona. Em cada recanto está a marca da passagem dos nossos irmãos da jornada humana, no tijolo assentado, na homilia do cardeal, na partida do navegador temerário, no fardo de especiarias que desce ao porto, na harmonia dos tons do canto barroco.

Veneza é para ficar definitivamente como está. Não é para ser descoberta e revelada.


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