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AGÊNCIA PÚBLICA

As duas caras da filantropia: o perigoso custo das doações de produtos ultraprocessados

Ação de responsabilidade social esconde riscos à saúde alimentar de vulneráveis no Brasil, México, Colômbia e Peru

Agência Pública [editores@diarinho.com.br]

Ilustração OjoPúblico/Claudia Calderón
Ilustração OjoPúblico/Claudia Calderón


Por Por Kennia Velázquez/OjoPúblico, Elena Miranda/OjoPúblico


María, uma indígena do povo Otomí do México, recebe todos os meses caixas de cereais açucarados e leite para seus filhos. Ela diz que só consome esse tipo de produto quando ganha, porque prefere ...

 

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María, uma indígena do povo Otomí do México, recebe todos os meses caixas de cereais açucarados e leite para seus filhos. Ela diz que só consome esse tipo de produto quando ganha, porque prefere que os filhos consumam “o que é natural, o que a gente cultiva. Tenho uma pequena estufa com cenoura, abóbora, brócolis e acelga”. As doações para a comunidade são da multinacional Kellogg’s e fazem parte do programa de responsabilidade social da empresa.



Uma reportagem da rede investigativa transnacional OjoPúblico, em parceria com o PopLab, analisou 39 programas de responsabilidade social das mais importantes empresas da indústria de ultraprocessados ​​e bebidas da América Latina e identificou que no Brasil, México, Peru e Colômbia, parte significativa das doações destinadas a populações vulneráveis ​​tem baixíssimo valor nutricional: são compostas por cereais açucarados, doces, bebidas açucaradas e similares.

Entre 2021 e 2023, a indústria de alimentos ultraprocessados doou mais de 35 mil toneladas de produtos na Colômbia por meio de bancos de alimentos; no México, entregaram 67,2 milhões de produtos; no Brasil, os principais doadores são Nestlé, Bimbo e Burger King; enquanto no Peru o banco alimentar local tem aliados como empresas como Oxxo, Mondelez ou PepsiCo.


Parte dessas doações é feita por meio de bancos alimentares, organizações sem fins lucrativos que recolhem alimentos para distribuí-los a populações com elevada vulnerabilidade alimentar devido aos elevados riscos de doenças não transmissíveis como o diabetes. Em alguns casos, como não recebem feijão, carnes ou alimentos de alto teor nutricional, esses bancos complementam as doações comprando outros insumos adquiridos em parcerias com agricultores.

No Peru, a líder Abilia Ramos, presidente da Rede de Panelas Comuns do distrito de San Juan de Lurigancho – um dos mais pobres da capital –, relata que já receberam bebidas açucaradas, como refrigerantes e outros produtos ultraprocessados, como doações. “Se for da sua vontade, diga aos empresários: não comprem refrigerante para a gente, o que precisamos é de alimentos que tenham proteína”, recomenda a dirigente.


Publicidade com cara de responsabilidade social

Pesquisas científicas consultadas para esta reportagem apontam que as doações por meio de bancos de alimentos enquanto ações de responsabilidade social da indústria constituem, na realidade, estratégias publicitárias. “São um mecanismo para criar uma intenção mais forte de compra”, afirmaram os autores do estudo “Revisão sobre as práticas do mercado e políticas das empresas alimentícias transnacionais e respostas da saúde pública”, de 2021.

O pesquisador do Instituto Nacional de Saúde Pública do México Simón Barquera destaca a necessidade de que produtos doados não tragam danos à saúde, uma vez que “nos lugares mais pobres, como é o caso do México, há doenças crônicas, obesidade e deficiências de micronutrientes”. Ele afirma que é preciso que as autoridades estabeleçam critérios melhores para doações do gênero, priorizando alimentos ricos em nutrientes, e que eles não sejam definidos pela indústria de ultraprocessados.

Um estudo de 2021, fruto de parceria entre universidades da Austrália, Indonésia e Brasil, aponta que o consumo de ultraprocessados estacionou em países mais ricos enquanto as vendas crescem naqueles de baixo ou médio desenvolvimento. Segundo a pesquisa, publicada no International Journal of Health Policy and Management, grandes empresas se aproveitam do crescimento dos mercados emergentes usando ações de responsabilidade social corporativa “como uma estratégia valiosa para ajudar a reduzir custos e aumentar investimentos e vendas futuras enquanto houver atuação fraca ou inexistente das autoridades [locais]”.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) destacaram que dietas saudáveis “previnem deficiências e excessos de nutrientes, e doenças transmissíveis e não transmissíveis” e recomenda evitar o consumo de alimentos que concentram altos níveis de gorduras saturadas e açúcares livres (processados e ultraprocessados).

Com esse fim e com o aumento de doenças relacionadas à má alimentação, nos últimos anos Brasil, México, Peru e Colômbia vêm promovendo leis contra a venda de fast food em escolas, regulando a publicidade e os rótulos de produtos ultraprocessados com o objetivo de proteger a saúde da população, em especial de crianças e adolescentes.


Por outro lado, a indústria tem aumentado sua influência por meio dos bancos de alimentos, principalmente em países mais pobres. No Brasil, 95 bancos de alimentos do gênero são agrupados pelo Sesc Mesa, enquanto o México concentra 56, Colômbia, 25 e o Peru, um. A Rede Global de Bancos de Alimentos reúne 50 organizações em 45 países e recebe apoio de bancos, empresas, fundações e companhias ligadas à indústria alimentícia, a exemplo da Kellogg’s e Herbalife. Essas fabricantes chegaram a doar 651 mil toneladas de produtos no mundo em 2023, segundo o balanço da organização. Os quatro países latinos concentraram 37% dessas doações (245 mil toneladas) – e um terço dos receptores foram crianças.

No Brasil e no México, uma das empresas que mais doaram produtos foi a Kellogg’s. A empresa apresenta em seus informes públicos que a ação faz parte de seus compromissos de sustentabilidade para “garantir a segurança alimentar e melhorar a nutrição”, mas também é uma das principais doadoras de ultraprocessados.

No mundo, o ranking de empresas de alimentos processados que mais doam, segundo o balanço anual da Rede Global de Bancos de Alimentos, também incluem Coca-Cola, Nestlé, Pepsico, Carrefour, General Mills, Grupo Bimbo, McDonald’s, Mondelez, Starbucks, Unilever e Walmart.

Ultraprocessados e a população mais vulnerável na América Latina

No Peru, o Banco Alimentar, uma organização civil sem fins lucrativos, é um dos principais intermediários entre as empresas que fazem doações e os beneficiários, como abrigos infantis, lares de idosos, escolas, hospitais, refeitórios sociais e moradores de áreas de vulnerabilidade social. A instituição indica que, desde a sua criação, em 2014, enviou esse tipo de produto a mais de 1 milhão de pessoas em 19 regiões do país, e que a sua rede de beneficiários é composta por 900 organizações sociais e comunidades.

Um estudo sobre cozinhas comunitárias no Peru, publicado na revista Debate Agrário em 2024, relata o caso de uma das organizações que durante a pandemia (entre 2020 e 2021) recebia doações de uma empresa, como verduras e frutas frescas e mantimentos, mas, que, desde 2022, recebe doces, alimentos industrializados e pouquíssimas compras.


“Eles me dão mais doces, o que me dão agora é mais chocolate, às vezes muito chocolate, e até me dão potes de guloseimas. Quer dizer, sim, é bom, mas não é comida para a gente, que é o que as pessoas precisam. Muitas vezes me dão balas, chicletes, biscoitos. Não é isso que vamos cozinhar”, diz uma das mulheres entrevistadas pela pesquisadora Gabriela Rengifo.

Um dos mais reconhecidos especialistas em alimentação saudável do México, o pesquisador Simón Barquera, presidente da Federação Mundial de Obesidade, explica que para as empresas de produtos ultraprocessados ​​o custo de produção é mínimo. “Isso gera lucros enormes e lhes dá muita capacidade de investir em marketing agressivo, e eles focam na infância, porque sabem que as crianças, além de terem muita influência nas decisões de compra em casa, também se tornam clientes cativos desses produtos”, afirma.

Um exemplo de como essas empresas ​​expandem seu mercado para as crianças é por meio das doações. No Peru, a empresa Backus y Johnston – do grupo AB Inbev, multinacional com sede na Bélgica, que produz cervejas e bebidas não alcoólicas – costuma entregar doações a crianças e idosos nos Centros Residenciais de Assistência do Programa Nacional Integral para o Bem-Estar Familiar (Inabif). A última delas, em março de 2024, foi de 2.010 unidades de bebidas, sendo 78% bebidas açucaradas (refrigerantes).

Barquera, que também é diretor do Centro de Pesquisa em Nutrição e Saúde do Instituto Nacional de Saúde Pública do México, alerta que “a região das Américas, e particularmente a América Latina, é uma das áreas onde se esperam aumentos mais significativos da obesidade nos próximos anos e onde uma percentagem maior da população está com sobrepeso e obesidade em geral”.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) informa que a América Latina passou por uma “transição nutricional”, ou seja, “as dietas tradicionais ricas em frutas e vegetais e pobres em produtos de origem animal mudaram para uma dieta rica em calorias e pobre em nutrientes, composta de carboidratos refinados, alto consumo de gorduras e alimentos processados”. 

Em um relatório de 2019, o Unicef ​​​​explica que isso se deve à rápida expansão das lojas de autoatendimento na região, que vendem dietas baratas e, em sua maioria, pouco saudáveis. Chamaram esses espaços de “ambientes obesogênicos” porque promovem o consumo de produtos de baixa qualidade nutricional. Essa situação gera, segundo Barquera, um duplo impacto: ter, ao mesmo tempo, um grande número de pessoas com obesidade e outro com desnutrição. 

Na América Latina e no Caribe há 5,7 milhões de meninos e meninas com menos de 5 anos de idade com desnutrição crônica e 8,6 milhões afetados pelo sobrepeso. Em dez anos, a desnutrição diminuiu na região; no entanto, o excesso de peso tem aumentado nesse setor da população em níveis médios e elevados.

Um estudo liderado pela Universidade de Melbourne questiona a influência da indústria na concepção de políticas públicas para melhorar a nutrição dos cidadãos. “Há evidências crescentes de que as práticas e políticas de mercado das grandes empresas alimentares moldam padrões de saúde e doença e representam um risco para o desenvolvimento e implementação de políticas de prevenção eficazes”, observam os acadêmicos.

A influência é grande: as dez maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo controlam 80% dos produtos vendidos nas lojas, com lucros anuais superiores a 100 bilhões de dólares – e 75% da renda provém de produtos de baixa qualidade.

Questionado sobre as doações de alimentos ultraprocessados, Juan Carlos Buitrago, diretor-executivo do Banco Alimentar Colombiano (Abaco), acredita que a política pública de segurança alimentar deve evoluir. “Há países, há bancos alimentares no mundo que já se dão ao luxo de só utilizar alimentos do campo, frutas e legumes; mas nesses países não há insegurança alimentar, não há mortes por desnutrição, são países desenvolvidos”, declarou, lembrando que, apenas na Colômbia, 4,2 milhões de pessoas não consomem as calorias diárias de que precisam.

A pressão da indústria

As ações para reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados ​​nas populações mais vulneráveis ​​no Brasil, México, Peru, Colômbia e outros países latino-americanos avançam a um ritmo lento. A nutricionista Ana Paula Bortoletto, do Centro de Pesquisa em Epidemiologias de Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Usp), explica que a aprovação de políticas na região exigiu muito tempo e esforço devido à interferência da indústria.

“Uma das estratégias [da indústria de alimentos ultraprocessados] é organizar grupos de defesa política, como associações comerciais, para ter relacionamento direto com tomadores de decisão em agências reguladoras, instituições de saúde e grupos de trabalho. Essas organizações representam os interesses, posições técnicas e políticas de grandes corporações sem que seus nomes estejam diretamente envolvidos”, afirma Bortoletto.

México e Argentina têm as experiências mais bem-sucedidas na regulamentação de alimentos ultraprocessados, segundo Bortoletto, devido ao forte pacote de medidas regulatórias aprovadas, como rotulagem nutricional, publicidade e restrições de oferta nas escolas e regulamentações para identificar alimentos não saudáveis e com maior impacto na saúde pública.

A nutricionista diz que o Brasil avançou com as diretrizes alimentares, que recomendam evitar o consumo desses alimentos, e com a promoção da alimentação saudável nas escolas, mas ainda não teve grande sucesso com a questão dos rótulos desses produtos, que indicam a concentração de altas, médias ou baixas quantidades de açúcares, sódio ou gorduras, seguindo o chamado semáforo nutricional (cores vermelha, amarela ou verde), em vez do modelo octogonal, que os especialistas consideram mais eficaz e que já foi implementado em países como Peru, Colômbia e México.

Mirko Lázaro, nutricionista do Instituto Nacional de Saúde do Peru, tem opinião semelhante. Reconhece que as disposições regulatórias do Peru, como a Lei de Promoção da Alimentação Saudável para Crianças e Adolescentes, os guias alimentares e o imposto sobre bebidas açucaradas tiveram impacto na indústria de ultraprocessados, mas considera que ainda há muito a fazer. 

“As empresas reduziram o teor de açúcar, sódio e gorduras saturadas em muitos de seus produtos, mas é preciso continuar melhorando a educação nutricional da população, principalmente da mais vulnerável, como crianças e adolescentes”, avalia.

Além do avanço das políticas regulatórias, a nutricionista brasileira destaca a crescente coordenação entre os países latino-americanos para a troca de experiências, informações e lições aprendidas. “Essa colaboração regional é muito importante para garantir políticas públicas mais eficazes e minimizar conflitos de interesses e interferências da indústria de ultraprocessados”, afirma Bortoletto. 

Por sua vez, Lázaro propõe melhorar a coordenação interna entre os setores de saúde, educação e agricultura de cada país, a fim de promover o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados.

Da Colômbia, Lorena Ibarra, da organização The Global Health Advocate Incubator, alerta que, quando as empresas não conseguem impedir o avanço de políticas que restringem o consumo dos seus produtos pouco saudáveis, procuram enfraquecê-lo. “A indústria cria padrões políticos alternativos. Se não houver expertise da sociedade civil e de organizações acadêmicas livres de conflitos de interesses governamentais, podem ser adotadas medidas inúteis para proteger a saúde e muito funcionais para a indústria”, alerta Ibarra.

Um exemplo da interferência da indústria de alimentos não saudáveis ocorreu quando a Associação de Bancos Alimentares da Colômbia (Abaco) alertou sobre um projeto de lei apresentado por parlamentares do partido Alianza Verde, em 2023. A iniciativa buscava proibir a doação de dez alimentos ultraprocessados: chocolate, aveia em flocos, requeijão, iogurte grego, pedaços de frango marinado, pão fatiado, presunto, chouriço, compota e sucos embalados. O diretor-executivo da Abaco, Juan Carlos Buitrago, alertou que essa regra afetaria as famílias de baixa renda que recebem periodicamente esses alimentos.

Os números oficiais de 2022 indicam que, na América Latina e no Caribe, 133,4 milhões de pessoas não têm acesso a uma alimentação saudável. A análise desses números revela que na região o custo médio de uma alimentação saudável é mais elevado do que em outros lugares. Enquanto a média global para uma dieta saudável é de US$ 3,96 por pessoa por dia, na América Latina é de US$ 4,56. Peru (US$ 33,6) e Colômbia (US$ 36,6) apresentam os custos mais elevados.

Embora os bancos alimentares sejam organizações independentes, trabalham em estreita colaboração com empresas de ultraprocessados, com as quais têm acordos de colaboração, doação ou aliança. 

Questionada sobre as doações de produtos ultraprocessados, Clarisa Fonseca, gerente de comunicação da Rede de Bancos de Alimentos do México, declarou que sua organização “não demoniza nenhum produto” e explicou que, embora existam “alimentos que nutricionalmente não vão nos dar nada, no nosso país há pessoas que todos os dias vão dormir com fome e vivem com fome, então o que fazemos com o apoio dos nutricionistas é entregar o pacote equilibrado para que, se entregarmos produtos com muito açúcar ou muita gordura, isso possa ser contrabalançado com outros produtos que não tenham”.

Juan Carlos Buitrago, diretor da Associação de Bancos Alimentares da Colômbia, explica que no país existem 22 mil crianças com desnutrição aguda. “Há quem diga que os alimentos industrializados não devem ser consumidos na Colômbia e não devem ser doados. Pensamos diferente: acreditamos que na Colômbia todos os alimentos são bons. Qualquer alimento faz mal quando consumido em excesso”, comentou.

Simón Barquera, por outro lado, considera que a doação de alimentos hiperpalatáveis, que possuem sabores intensos, pode ter impacto na infância e que crianças que consomem ultraprocessados podem, ao experimentar alimentos naturais, “por questões sensoriais, deixar de preferi-los”, alerta.

Alimentos ultraprocessados ​​– como refrigerantes, sucos engarrafados, energéticos, iogurtes de frutas, batatas fritas, salgadinhos, biscoitos, chocolates, balas, cereais açucarados, barras energéticas, embutidos, carnes processadas como salsichas ou hambúrgueres, nuggets de frango e barras de cereais – estão associados a problemas de saúde, incluindo doenças cardíacas, hipertensão, diabetes, câncer e depressão, entre outros, de acordo com um estudo em grande escala publicado no British Medical Journal em 2024. 

Para esta investigação foram solicitadas entrevistas aos representantes regionais das empresas Coca-Cola e Nestlé, e ambos indicaram que não dariam entrevistas. Por sua vez, o Grupo Bimbo e a Kellogg’s não responderam aos pedidos feitos por meio de seus emails oficiais.




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