VIOLÊNCIA
A história interrompida de dois irmãos mortos pela polícia nas operações Escudo e Verão
Mãe de vítima e moradores do Guarujá denunciam execução e que policiais celebraram mortes
Agência Pública [editores@diarinho.com.br]
Por Texto: Agnes Sofia Guimarães | Edição: Bruno Fonseca | Agência Pública
“Nem é Operação Verão mais, mataram meu outro filho no outono. Aí eu pergunto: quando isso vai acabar?”, desabafou a técnica de enfermagem Maria Silva na manhã da terça-feira, 26 de março, no Instituto Médico Legal (IML) da cidade de Praia Grande. Ela aguardava para reconhecer o corpo do seu filho mais velho, Matheus Ramon Silva de Santana, 22 anos, morto por ação da Polícia Militar do Estado, no dia anterior. Matheus morreu ao lado do pedreiro William Sousa, de 35 anos, no alto do morro da viela em que morava, na comunidade da Barreira, no Guarujá.
A morte de Matheus ocorre em um momento que já é de luto para a família. Sete meses antes, no dia 28 de agosto do ano passado, o filho adotivo mais novo de Maria Silva, Luiz Gustavo Costa Campos, de 15 anos, foi morto por policiais na comunidade do Cantagalo, também no Guarujá.
O jovem estaria a caminho do dentista, relata a família. Testemunhas contam que ele foi arrastado para o mangue, ao contrário do que diz o Boletim de Ocorrência, que relata que o adolescente apontou uma pistola para os policiais. Maria tem certeza de que seus dois filhos foram executados. Ela tem ainda outros dois filhos vivos.
Ambas as mortes aconteceram durante grandes operações realizadas – e defendidas – pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). A de Luiz, durante a Operação Escudo, iniciada em fevereiro de 2023. Foram 28 mortes no ano causadas pelos policiais. Já a de Matheus se junta ao total de 55 mortes da Operação Verão, que, iniciada em fevereiro de 2024, se estende mesmo com o fim da estação.
Apuração da Agência Pública mostrou como o governo Tarcísio fez aumentar a letalidade policial no Estado, inclusive as mortes de crianças e adolescentes, que vinham caindo havia dez anos. Em fevereiro, a reportagem contou a história de Luiz, quando seu irmão Matheus ainda estava vivo.
Por que isso importa?
Histórias como a de Matheus e William estão entre várias outras denúncias de execução nas operações Escudo e Verão, que já somam mais de 80 mortes em menos de dois anos
Em 2023, a Operação Escudo foi denunciada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e um relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) identificou violações de direitos humanos, incluindo casos de execução
A Pública questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre a morte de Matheus. Em resposta, a pasta afirmou que, “na ocasião, PMs foram recebidos a tiros pelos criminosos, que se escondiam em uma residência. Houve intervenção e eles foram atingidos, morrendo no local. Na ação, a polícia apreendeu duas pistolas 9 milímetros que estavam com os suspeitos, além de maconha e balanças de precisão. O caso foi registrado como tráfico de drogas, tentativa de homicídio, morte decorrente de intervenção policial e legítima defesa na Delegacia do Guarujá. A perícia foi acionada e todas as circunstâncias relativas aos fatos são apuradas”, diz a nota.
A secretaria ainda acrescentou que “o caso mencionado é rigorosamente investigado pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário, e os dois suspeitos já foram identificados”. Veja a resposta completa aqui.
Matheus e William: mortes questionadas pela comunidade
A Pública obteve, através de amigos de Matheus, o vídeo que se tornou o último registro conhecido dele e do pedreiro William vivos. A gravação teria sido feita no começo da tarde de segunda-feira, poucos minutos antes das mortes. Na imagem, o pedreiro trabalha no telhado da residência, observado pelo dono da casa e por Matheus.
Assim que gravou o vídeo, o amigo de Matheus conta que desceu o morro para resolver questões pessoais. O proprietário da casa onde estavam trabalhando também teria se afastado do local para buscar o almoço. Ambos nunca mais viram a dupla.
Testemunhas relatam que, do momento em que o vídeo foi gravado até a polícia chegar aonde estavam Matheus e William, o intervalo foi de cerca de dez minutos. Após isso, moradores teriam escutado de sete a dez tiros do alto do morro.
Segundo os relatos, a polícia teria ficado com os corpos de Matheus e William durante todo o dia, descendo com eles por volta das 10 da noite. A passagem para a região alta do morro, que é cercada por casas, teria sido impedida. Moradores relataram que ouviram policiais rindo e gritando “matamos dois”, enquanto diversos militares transitavam pelo local.
“A gente começou a gritar que eles tinham matado uma pessoa doente, gritamos por justiça”, diz uma vizinha de Matheus. Segundo o Boletim de Ocorrência, apenas quatro policiais teriam participado de toda a ocorrência.
Uma ambulância teria ido ao local no início da tarde, segundo moradores, que avisaram a mãe de Matheus. “Perguntaram para um funcionário da ambulância quem estava lá em cima, e aí o moço respondeu: ‘Olha, eu não posso falar muito, mas um é pardo e outro é branco’. E ele também disse que eles já estavam mortos e que é por isso que a ambulância estava descendo sem ninguém. Ele falou que quem recolhe morto é o Corpo de Bombeiros”, conta Maria, que diz ter sido informada pela polícia que receberia mais informações sobre as vítimas somente na delegacia.
Familiares de Matheus e William foram informados de que só teriam acesso ao Boletim de Ocorrência depois do reconhecimento dos corpos no dia seguinte, que chegaram sem identificação ao IML de Praia Grande.
Já durante a noite, em um dos vídeos recebidos pela reportagem, um familiar de Matheus questiona a polícia. “O menino faz tratamento, todo lascado, e o outro trabalha, só trabalha, como pode, pelo amor de Deus?!”, reclama.
Com os moradores correndo atrás das viaturas, policiais atiraram granadas lacrimogêneas contra a população. Pessoas passaram mal e foram encaminhadas à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da região. Uma moradora chegou a ter parte do rosto queimada, enquanto protegia o filho de 2 anos da fumaça.
Outra moradora tem uma filha de 11 anos que sofre de asma e estava finalizando um tratamento. Após ter sido exposta ao gás, a garota foi orientada a retomar a medicação com bombinhas por mais uma semana. “Ela ficou totalmente traumatizada, só fala sobre isso. Eu tive a sorte de agir rápido, porque, sendo asmática, ela correu um grande risco ao ser exposta a esse gás. Ficou mais de uma hora no hospital tomando a medicação e agora precisa continuar o tratamento em casa, tratamento que estava prestes a receber alta”, lamenta a mãe.
Segundo o Boletim de Ocorrência, relatado pelo policial Daniel Balduíno de Araújo Júnior, o sargento da PM Wagner Júlio Martins da Silva, o sargento PM Marcos Pavarini Júnior e o soldado da PM Renato César Cherubim estavam realizando um “reconhecimento de área” para uma operação que ocorreria no dia seguinte. Ao chegarem no alto da comunidade, encontraram uma casa onde teriam entrado em conflito com dois indivíduos. O boletim ainda afirma que foram encontrados, dentro da casa, drogas e cartuchos de fuzil.
A Pública questionou a Secretaria de Segurança Pública por que Matheus e William foram enviados como desconhecidos para o IML, mesmo com a presença das famílias no endereço durante a ocorrência e por que as famílias demoraram para ter acesso aos corpos das vítimas, mesmo estando no local com a documentação e tendo se reportado aos policiais.
A reportagem indagou também se as câmeras das fardas dos policiais foram solicitadas, quantos militares de fato participaram da ação e por que a Força Tática jogou gás de pimenta contra a população.
A pasta ainda não respondeu a essas perguntas.
Matheus: irmão mais velho, torturado por um crime que não cometeu
Diagnosticado com esquizofrenia em 2019, Matheus foi detido por policiais após uma abordagem em 2021.
Na ocasião, de acordo com moradores, o jovem foi confundido com um suspeito de ser traficante, que era procurado pela polícia. Segundo relato da mãe e repetido por outros moradores da comunidade, Matheus teria sido torturado pelos policiais.
Após ter sido detido, segundo os relatos, Matheus teria sido levado para uma casa vazia, recebido choques na língua, obrigado a beber água de privada, além de apanhar. Segundo a denúncia, quando os policiais teriam tentado violentá-lo com um pau de arara, ele teria revidado – o que levou a mais golpes. Matheus teria apanhado até ser obrigado a confessar e desmaiou, acordando quando já estava com a prisão decretada.
Maria argumentou pela inocência do filho. A defesa apresentou um laudo no qual sustenta que o jovem recebia tratamento psicoterapêutico com o apoio da família.
Após sete meses preso, a família conseguiu libertá-lo. No alvará de soltura, consta que ele foi solto por erro na ocorrência: “Apropriação de Coisa Havida por Erro, Caso Fortuito ou Força da Natureza”. Matheus ganhou liberdade provisória e o processo foi arquivado pouco tempo depois.
Contudo, a comunidade afirma que os surtos pioraram depois da experiência e que Matheus ficou cada vez mais temeroso da presença da polícia na comunidade.
“Nos últimos meses dele, eu fiz de tudo para ele não ficar exposto à violência da polícia de novo. Eu tinha muito medo, porque não sabia o que podia acontecer. Ele tinha um pavor da polícia, corria quando ela chegava e eu sempre falava pra ele que não podia agir assim, mas daquele jeito, em crise, não tinha como controlar”, desabafa Maria.
Luiz: irmão mais novo, morto na comunidade que o acolheu
Matheus morreu a menos de 20 dias de ter feito aniversário. Mas o período não era de celebração: o rapaz andava calado e triste havia semanas, após ter se recuperado da última crise que teve, segundo a família, desencadeada após ter enterrado o irmão mais novo. Foi Matheus quem insistiu para que a família acolhesse Luiz, quando o garoto tinha 12 anos e estava em situação de rua.
Conhecido como Peu, Luiz nasceu e cresceu no Cantagalo, que também faz parte da Enseada – região com a praia de maior extensão do Guarujá e muito frequentada por turistas em finais de semana ensolarados. A alguns quilômetros da faixa de areia, comunidades populosas ocupam os diversos morros da área. O Guarujá está entre os municípios da Baixada Santista com o maior número de favelas.
Segundo os moradores ouvidos pela reportagem, Luiz cresceu sendo cuidado pela comunidade. Devido a questões familiares, ele passou longos períodos na rua ou vivendo com outras famílias, até chegar à casa de Maria e Matheus.
Maria conta que estava habituada a ver os três filhos “de sangue” doando roupas e alimentos para pessoas em situação de rua nas comunidades da Enseada. Ela relembra que, um dia, Matheus comentou que ajudavam um rapaz que dormia em um galinheiro de uma das casas do Cantagalo. Ele tinha acabado de perder o barraco que havia improvisado na rua, após uma ação da polícia. Compadecida, a técnica de enfermagem permitiu que os filhos levassem o amigo para casa.
“Quando eles falavam do Luiz, eu imaginava que fosse um adulto, mas, quando ele chegou, vi que ele era uma criança, e isso me impressionou. Ele chegou em casa sem a gente ter um histórico dele, sem saber se ele já tinha tomado uma vacina na vida. Então eu comecei a levá-lo aos médicos”, diz Maria.
Aos poucos, a relação de Maria com Luiz se tornou de mãe e filho, mesmo que ele a chamasse de tia. Durante o período em que o acolheu, a técnica de enfermagem conseguiu que ele atualizasse o quadro vacinal e fizesse exames de rotina. As idas aos médicos, com um filho que não era seu, chamou atenção do Conselho Tutelar, que a procurou algumas vezes. Nessas ocasiões, Luiz fugia.
“Ele ficava com medo de voltar para o abrigo e acabava fugindo para a casa de algum parente em Santos [município vizinho ao Guarujá]. Teve uma vez que ele ficou na casa da avó, depois, da irmã mais velha. Quando ele morreu, fazia quase três meses que ele tinha retornado para casa”, lembra. Ela conta também que pensou em entrar com um processo oficial de adoção, mas não chegou a iniciar o trâmite por causa das fugas de Luiz.
A reportagem procurou o Conselho Tutelar, que ainda não respondeu sobre a situação de Luiz.
Matheus e Luiz: delírios de luto e recordações da comunidade
Maria conta que fazia meses Matheus só vestia três camisas: as mesmas que pertenciam ao seu irmão mais novo, de quem era inseparável.
“Eles dormiam no mesmo beliche e, mesmo depois que eu tirei a cama do Peu, era difícil para o Matheus continuar dormindo naquele quarto”, lembra. “Ele não falava muito do Luiz, era muito fechado. Mas, quando ele estava no surto, às vezes eu o pegava se olhando no espelho, dizendo: ‘Isso aí, Tubarão, a gente vai vencer’. Em outros, ele chorava muito, ficava remoendo o dia da morte do irmão, dizendo que, se estivesse com ele, teria ficado na frente dele para que a bala atingisse ele e não o Luiz”, detalha.
“Você ia na casa deles, de repente o Matheus estava sentado na cadeira querendo colocar o Luiz na conversa. Mas ele não estava ali, ele estava falando com as paredes. Era algo da gente comentar algo, ele virar e falar: ‘Peu, olha isso’”, conta uma vizinha de Maria.
Muito apegada a Matheus, a vizinha conta que a pontualidade do jovem era o que mais lhe chamava atenção. “No velório, o corpo dele chegou às 8 e pouco da noite, estava marcado para ser às 9. Eu falei: ‘É o Matheus que a gente conhecia, mesmo. Vai ser pontual aqui também’. A gente fica tentando achar graça porque, mesmo na tristeza, a gente precisa lembrar como ele brincava com a gente”, conta.
Outra vizinha relata que, há alguns meses, de madrugada, o seu marido estava passando mal, prestes a ter um infarto, e o jovem foi o único que conseguiu ajudá-lo. “Ele saiu doido da casa dele e virou enfermeiro, médico, tudo ao mesmo tempo. Quis medir a pressão dele, pegou aparelho, mandou mensagem para a mãe, que estava de plantão, fez de tudo para ajudar meu marido”, relembra.
Uma terceira moradora da comunidade se refere a Matheus como o “único genro que ela aceitou”, dentre todos os namorados e companheiros das filhas. No grupo de mulheres, entre lágrimas, alguns sorrisos escapam quando lembram que Matheus, mesmo durante as crises no final de 2023, preocupava-se com a gravidez da ex-namorada e a visitava para saber sobre sua saúde e do bebê que estava a caminho. “Há uns meses ele chegou aqui em casa, deu uma correntinha pra minha filha e falou assim: ‘Colocou no berço? Coloca, porque eu tenho certeza que o filho é meu’. Ele falava como se soubesse que não ia ver a criança nascer, mas insistia que ia juntar dinheiro, pedir o DNA. E eu falo aqui olhando para ela [Maria], o filho dela era como se fosse um filho meu”, confidencia.
Ela conta que a filha, que não pôde comparecer ao velório por estar internada com o filho recém-nascido, ligou aos prantos, durante a cerimônia, pois queria ver o ex-namorado pela última vez. “Eu não deixei, achei que seria desrespeitoso com a mãe dele. E também disse a ela: ‘Agora, é melhor você ter a última imagem dele vivo, que é o que ele foi para a gente, e não o jovem machucado no caixão”, concluiu, aos prantos.
William: pedreiro, uma fogueira para dias frios
William Santos é descrito como um homem gentil e tímido, de poucas palavras. Sua grande paixão eram os filhos e os jogos, que jogava pelo celular.
Entre idas e vindas, Clotilde* estava com William havia 17 anos. Juntos, tinham dois filhos: uma menina de 9 anos e um adolescente de 11 anos. Ela, que é dez anos mais velha que o pedreiro, conta que o conheceu quando ele tinha 19 anos e trabalhava em uma construção na cidade de Bertioga. Não demoraram a ficar juntos e, com quatro anos de relacionamento, mudaram-se para o Guarujá.
“Nós vimos o Matheus nascer. A gente não saía da casa deles e ultimamente eles [William e Matheus] estavam pra cima e pra baixo juntos . Meu marido era muito amoroso com os filhos, com todos na verdade, até demais. Parecia uma criança quando estava em casa, queria ficar vendo desenho com as crianças e comendo guloseimas”, lembra Clotilde. Ainda abalada com a morte do esposo, ela preferiu não ir ao velório, assim como os filhos.
A união das duas famílias era compartilhada com a comunidade. “No inverno, a gente fazia fogueira lá na casa do William. Cada um levava o que podia – pipoca, refrigerante –, e eu era a cozinheira do morro. As crianças ficavam lá rindo, era uma bagunça gostosa. Também tinham os dias de sol, de churrasco. Aqui é uma comunidade que cresceu com todo mundo junto o tempo todo”, conta uma vizinha de Maria.