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Reconhecer nossas cicatrizes
Já transcorram 35 anos desde o final da ditadura militar na Argentina, conhecida como Revolução Argentina. E como os militares se referiam constantemente nesse período: A revolução argentina tem objetivos, mas não prazos. Parece-nos que estavam certo. Como se o prazo tivesse sido prolongado, poucas sociedades no mundo vivem ainda suas feridas com tanta intensidade como a sociedade argentina.
Por sorte, estão caminhando por novos trilhos. Caminhos estes que hoje possibilitam a qualquer cidadão (isso inclue turistas) a conhecer um dos principais palcos desse regime, a Escola de Mecânica Armada E.S.M.A.
Nessa instituição, localizada numa das regiões mais ricas e bonitas da capital Buenos Aires, foi um verdadeiro cenário de guerra, em que passaram em torno de cinco mil presos políticos (referente ao total de trinta mil desaparecidos).
Quando se vive a experiência de conhecer um lugar, que faz jus a um campo de concentração nazista, o mínimo que um ser humano sente é indignação e um mal-estar sem procedentes.
Ali jovens eram soldados e eram prisioneiros. Dentre muitíssimas histórias que o guia narrava, certamente conhecer o Setor 4 (porão) onde eram realizadas as entrevistas, as boas vindas e de onde se realizavam os translados, que, em geral, nada mais significam que a sentença de morte. É um momento que nos vem uma sensação que nos torna frágil e inevitavelmente nos coloca frente a algumas verdades humanas, sobre os processos políticos e civilizatórios que nossas sociedades, ao redor de todo mundo, por algum momento, aderem, oficialmente ou não, ao chamado Terrorismo de Estado.
Saber que ali nasceram humanos, que foram sequestrados, e que suas mães e pais morreram e muitos de seus filhos até hoje sequer sabem de suas origens, saber que religiosos(as) contrários ao regime eram escravizados, que jornalistas arriscavam a vida para adentrar nas veias do regime, que foi capaz de ENGANAR a Comissão Internacional de Direitos Humanos. Observar as lágrimas de alguns visitantes é no mínimo uma experiência desnorteadora. Presenciar o compromisso de alguns deles, os que conseguem, em não mais se calar frente suas feridas, ainda tão vivas.
Sim, porque ali, entre jovens, estrangeiros e comunidade local, havia sobreviventes do regime, que conseguiam falar, e outros que você podia sentir, mas que se comunicavam apenas com os olhos, como se não pudessem lidar com esse passado sem uma imensa tensão, desconfiança e dor.
A E.S.M.A está sendo preservada a ponto de que fotos internas de prédios-chave são proibidas, porque, apesar de terem sofridos mudanças físicas ao longo dos anos, eles servem como provas concretas nos julgamentos dos envolvidos nos desaparecimentos- mortes.
A Argentina está julgando seus militares, porque sabe que precisa cicatrizar essa ferida, como sociedade; precisa se recriar, reconhecer sua história e fazer jus à palavra Justiça. (O caso das Mães da Praça de Mayo, em busca de justiça, é sem dúvida um dos movimentos sociais mais eficazes e reconhecidos internacionalmente). O que de alguma forma nos coloca frente ao surgimento de uma nova maneira da sociedade pensar em si mesma.
Claro que não se trata de dizer que isso ocorre com os quarenta e dois milhões de argentinos, mas prova que iniciaram um processo, à maneira deles, em suas possibilidades e limites. O que nos implica, como brasileiros, toda essa história?
Talvez também buscar nos reorganizar enquanto sociedade como nos vemos. Nossas feridas parecem mais cicatrizadas que as argentinas, é verdade, nossa realidade é um tanto diferente, mas feridas são sempre feridas, se não provocam mais a dor intensa do ato de rasgar a pele, permanecem vivas, na memória, toda vez que olhamos para elas. O que nos coloca a enfrentá-las, não nos esquecermos dos milhares que lutaram por nossas liberdades, dos movimentos de democratização (MDB de Chico Mendes, Juventude de Elis Regina, Chico Buarque, Raul Seixas e tantos outros), do que pensavam enquanto sociedade, fazer jus à nossa característica tão valorável fora do Brasil, de manter o sorriso, sem deixar de lutar por dias melhores. O tipo de sociedade que queremos passa necessariamente pelo conhecimento de nossa história e nosso entender sobre nós mesmos e nossas feridas. Todavia, marcas ainda não reconhecidas, frente a um congresso (felizmente minoria) ainda representado com convictos defensores de uma sociedade limitada em seus direitos humanos.
* O autor é pós-graduando em Educação pela Faculdad Latino Americana de Ciencias Sociales (FLACSO- UNESCO) e está mestrando Sociologia do Instituto de Altos Estudos Sociales.Universidad Nacional G.San Martín/Buenos Aires-Argentina