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A vida como um roteiro
Se a vida imita a arte, nesses tempos em que o cinema e a televisão dominam nossas visões, nossa vida bem poderia ser um roteiro de Hollywood. Aliás, ultimamente, esta tem sido uma estratégia utilizada na construção dos filmes: elaborar ficção baseada em fatos reais. Talvez tenha sido nisso que pensava Eric Berne, quando cunhou o termo script (ou roteiro de vida).
Berne, psiquiatra canadense e criador da Análise Transacional, em meados de 1950, buscou criar uma teoria da personalidade em que a situação do terapeuta fosse de igual para igual com o cliente (ou o mais próximo disso), utilizando assim conceitos mais populares, ou de fácil compreensão, que permitisse às pessoas apoderarem-se de seu processo de mudança. Berne partiu dos conceitos psicanalíticos para focar-se na relação entre as pessoas (por isso transacional, de transações). Um grande autor de best-sellers de autoajuda, Roberto Shinyashiki, utiliza em muitos seus conceitos (nem toda autoajuda é literatura ruim, aliás, se nós não nos ajudarmos, quem o fará?). Não vou me aprofundar em sua teoria neste momento, me interessa apenas um conceito, entre os vários que cunhou: script, ou roteiro de vida (a tradução papéis de vida também é utilizada).
Segundo a teoria dos scripts, as pessoas fazem planos de vida em sua infância e/ou começo da adolescência (embora geralmente aconteça na primeira infância), e seguem este roteiro ao longo de suas vidas, tornando, por assim dizer, o final previsível (como os filmes de Hollywood, o cinema francês já é diferente). Este roteiro é construído a partir das injunções postas pelos pais à criança, e que ela não apenas aceita, mas escreve sua vida buscando torná-las reais.
A criança, à medida que recebe estímulos do meio ambiente, vai estruturando uma visão de si mesma, dos outros e do mundo em que vive. Quando ela internaliza uma visão negativa de si mesma, vai assumindo posições existenciais que, quanto mais cedo forem tomadas, poderão ser nefastas em virtude da fragilidade a que a criança está submetida.
Lembro de uma criança que acabara de entrar na primeira série que atendi em certa ocasião. Segundo a professora, ela não aprendia de jeito nenhum, parecia ter um bloqueio, que a professora, claro, jurava ser cognitivo e biológico. Chamei a criança para conversar. Linda criança, comunicativa, expansiva, praticamente uma atriz. Expliquei que era psicólogo e o que fazia, e perguntei se ela sabia o motivo pelo qual estávamos conversando. Porque eu não aprendo, me disse. E por que você não aprende?. Porque eu sou burra, me respondeu sem vacilar. Aquilo me chocou, e me levou a perguntar como ela sabia que era burra... Porque a minha mãe sempre me diz: você é burra, não pode aprender nada!.
Saindo da psicologia e entrando na sociologia, encontramos um conceito parecido: profecia autorrealizável. Este termo foi cunhado pelo sociólogo estadunidense Robert K. Merton, se não me engano na década de 1950. Profecia autorrealizável é, segundo ele, um prognóstico que, ao se tornar uma crença, provoca sua própria realização. É quando as pessoas acreditam que algo acontecerá, e por isso agem como se a previsão, hipotética ou fantasiosa, já fosse real. Assim ela acaba por, de fato, se realizar. Para desenvolver o conceito, Merton estudou a corrida aos bancos, e verificou que quando se difunde o boato de que um banco está em dificuldades e irá quebrar, os correntistas apressam-se em retirar os valores ali depositados e, com isso, de fato o banco quebra. Um estudo realizado por Douglas McGregor sobre o conceito também mostrou que a expectativa dos gerentes afeta o desempenho dos empregados. Se o gerente acredita que o desempenho é bom, em geral, o empregado tende a confirmar sua expectativa. O mesmo acontece de forma negativa. Foi isso que aconteceu com a criança que falava antes, uma profecia autorrealizável, a criança cumprindo o script que herdou da mãe.
O processo terapêutico, na análise transacional, tem como objetivo ajudar o cliente a refletir sobre estes mandatos que herdou de seus pais e que construíram seu script. Desta forma, tornando consciente o que não o era, torna-se possível transformar este roteiro de vida, de forma autônoma, para se tornar, de fato, autor da própria vida. É algo como o que nos diz Eduardo Galeano, fantástico escritor uruguaio: Somos o que fazemos, mas somos, sobretudo, o que fazemos para mudar o que somos.
É bom salientar que nossos ancestrais não fazem isso por maldade. Ao contrário, sempre buscam o melhor. Mas fazem porque também sofreram essas chagas. É quase como se fosse a transmissão de uma maldição, da perpetuação como herança de uma miséria emocional que receberam. Mas, como diz, não o poeta, mas o anonimato, não devemos querer um mundo melhor para nossos filhos, mas filhos, e por isso pessoas, melhores para nosso mundo... É preciso mudar!