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Psicologia de barbearia


Ignoro se alguém, psicólogo ou cientista social, já se deu ao trabalho de investigar a psicologia dos salões de barbearia. Da infância à adolescência, frequentei o salão do Vicente, no bairro Savassi, em Belo Horizonte.

Estará vivo o Vicente? Figura! Alto, atlético, moreno, exalava sempre sorrisos e paciência. Estendia uma tábua entre os braços da cadeira (forrada de couro verdadeiro!), de modo a aproximar a cabeça da criança de sua ágil tesoura.

Meus irmãos mais novos deixaram o cabelo aos cuidados do Pedrinho, na rua Major Lopes (a dois quarteirões da casa da Dilminha, hoje presidente). Vicente fincou pé no mesmo salão da rua Pernambuco. Pedrinho, empreendedor, de fio em fio criou uma teia de barbearias, com cadeiras temáticas para os meninos se sentirem pilotando um carro de Fórmula 1 ou um batmóvel.

Conversa de barbearia de adultos é sempre amena. Todo barbeiro é um conciliador nato. Voz pausada, enquanto faz correr o pente, dançar a tesoura ou escorregar a navalha, vai tirando do cliente comentários e confidências.

Vai chover, diz o da barba. É, pelo jeito vem água aí, murmura o profissional com o pincel de barba à mão. Em seguida, senta o sitiante para aparar as costeletas: Já não há quem aguente essa seca. Pelo jeito, tão cedo não cai um pingo d’água. Com navalha afiada o barbeiro reduz dois centímetros da costeleta, e concorda: Lá onde moro logo logo vai faltar água até pra beber.

Não é nada fácil descobrir duas coisas em barbeiro: time para o qual torce e preferência partidária. Tomou assento o cabeludo, agasalhado pelo camisão impecavelmente branco, diga o que disser, o profissional jamais o contestará.

Nunca vi quebrarem o pau numa barbearia por discordância política. Felizmente, considerando a profusão de navalhas e tesouras em volta! Futebol é a mesma coisa: o barbeiro quase sempre torce pelo time do cliente. Você tem razão, o Corinthians se precipitou ao comprar o Pato. É, doutor, nós santistas ficaremos na pior no dia em que venderem o Neymar!

Um comentário aqui, uma observação ali, e o papo segue enquanto a chuva de fios depenados escurece o camisão.

Há outra dimensão, esta sim, prato cheio para os psicólogos. É a secreta motivação que leva muitos clientes à estofada cadeira móvel. Tive um vizinho que todas as manhãs entregava o rosto no salão da esquina. Perguntei-lhe um dia se a preguiça o impedia de cuidar da própria barba. Bem casado, pai de uma trinca de filhos, não escamoteou: Vou ao salão porque me faz bem o carinho do barbeiro. E não me leve a mal, frisou. Aquelas mãos suaves, a nuvem de creme suscitada pela dança do pincel, o perfume, tudo me faz lembrar o tempo de menino, quando meu avô me punha no colo e, com as costas das mãos, me acarinhava o rosto. Que mulher tem paciência de uma coisa dessa?

Outro amigo, careca a reluzir, apenas uns fiozinhos estendidos entre as orelhas e na nuca, me confidenciou quando indaguei por que frequentava o salão toda semana: Gosto de sentar na cadeira, sentir-me abraçado pelo camisão branco, percorrer os olhos em revistas antigas, escutar o leve ruído metálico da tesoura surpreendendo um fio aqui, outro ali, a extremidade do couro cabeludo acertada pela navalha e, por fim, o espanador de pelos e o borrifar da água de colônia...

Quem tem grana ou prestígio se dá o luxo de convocar barbeiro a domicílio. Lembro de um deputado que, sentado à varanda, entregue ao corte, revestido de tantas toalhas que mais parecia uma noiva gorda, insistia, a todo momento, em interromper a dança do pente e da tesoura para falar ao telefone, cujo fio se estendia desde a sala de visitas.

Um dia, irritado, o barbeiro, sem querer, feriu de leve sua excelência e foi despedido no ato. No mês seguinte, foi chamado à casa do parlamentar. Relutou. O cliente veio ao telefone, pediu desculpas e dobrou o valor a pagar.

Doutor, eu volto, disse o profissional, mas com uma condição: nada de telefone. O deputado consentiu. Em meio ao trabalho, o barbeiro perguntou por que havia sido chamado de volta. Ora, admitiu o político, tenho uma imagem a preservar e ninguém deixa o meu cabelo tão de acordo comigo mesmo como você.

É isso: muitos clientes mantêm fidelidade capilar a um barbeiro, como um cão a seu dono. Tudo porque barba e cabelo são as únicas coisas que, com frequência, mudam onde reside o centro de nossa identidade: no rosto. Uma brusca mudança num ou noutro causa sempre estranhamento.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros


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