Colunas


Os rolezinhos causam vertigem na mídia (PARTE II)


Os rolezinhos são politizados

Não estaríamos diante de um novo movimento oriundo das mas­sas virtuais, que se configura no pró­prio movimento, cujo sintoma dá-se justamente na relação social com esse novo; por isso que no campo da comunicação pode-se trabalhar com a noção de que a narrativa cria o acontecimento.

O filósofo Paulo Girardelli fez tam­bém uma boa observação publicada (15/01) em sua página na internet: “As classes médias se retiram do lugar se ele pega a fama, correspon­dente ou não ao que ocorre, de ‘lu­gar de pobre e preto’. É pior que a fama de ‘lugar de puta’ ou ‘lugar de noia’”. Há, sim, assepsia social.

Mas, talvez, o melhor depoimen­to tenha vindo de quem vivencia os rolezinhos. Fábio Goulart, um dos organizadores dos rolezinhos de Por­to Alegre, fez um longo comentário após artigo de Juremir Machado da Silva, publicado dia 19/01 no Correio do Povo, intitulado “Em defesa dos rolezinhos”. No comentário, Fábio diz: “Os rolezinhos nada mais são do que passeios… Jovens da peri­feria querendo passear, curtir, zoar, conhecer gente nova, beijar… E to­das essas outras coisas que a velha classe média vai fazer normalmente no shopping. O simples alvoroço que se criou em torno dos rolezinhos já prova a questão do preconceito que tanto se fala. Quando vai um grupo de 300 jovens da velha classe mé­dia fazer um barulhento flash mob no shopping, ninguém fala nada; quando vão 300 ‘bixos’ da universi­dade federal badernar, ninguém fala nada… Por isso digo que os rolezi­nhos são politizados”.

O inconsciente político

Consideremos a tese freudiana de que o desejo é demanda do incons­ciente. Poderíamos, então, defender que a mudança está no âmago da existência, já que a consciência (o que poderia ser substituído pela cul­tura) é justamente o espaço da fan­tasia que busca tapar a outra cena (inconsciente) que causa vertigem.

Uma manchete do jornal Cruzei­ro do Sul (18/01), de Sorocaba, SP, expressa bem a relação sintoma e fantasia do nosso tempo: “Shoppin­gs conseguem liminar contra rolezi­nhos”. Ao ler a matéria, percebe-se que não houve nenhum incidente nos shoppings da cidade que pu­desse motivar a ação. Engano. Esses não são espaços públicos. É uma es­pécie de faz de conta de que é públi­co. É como a brincadeira com carre­tel do neto de Freud, que era o fio de ligação com sua mãe. Na ausência materna, Ernst jogava o carretel para fora do berço (saindo do seu campo de visão) e, em seguida, puxava-o alegremente de volta para si. Assim, a criança suporta a ausência da mãe imaginando, tal qual percebe no car­retel, que ela voltará. Esse jogo de faz de conta integra o outro lado da fantasia da nossa realidade, já que a primeira é a possibilidade de perda do que se acredita ter. No fim, não há nem mãe nem objeto para se per­der, mas somente fantasia.

O problema é entender por que a fantasia dos jovens da periferia pas­sou a incomodar a fantasia de parte dos estabelecidos da sociedade. A operação é semelhante à demanda que vem do inconsciente: há outra cena oculta no discurso pragmático da mídia que motiva a formação do acontecimento – do rolezinho como um sintoma. Assim, se o rolezinho é um acontecimento midiático, há uma outra cena (supõe-se política) aterrorizando a mídia conservadora e causando vertigem na comunica­ção. Neste ponto, chegamos pra­ticamente ao inconsciente político defendido por Deleuze e Guattari, ou seja, ao invés de entendê-lo como representação (teatro) de conteú­dos inconscientes, ele é produção, é usina; ele é fabricado. Aqui, o in­consciente sai da célula familiar, edi­piana. É por isso que a deontologia, na comunicação, é literalmente uma fantasia produzida, já que o sentido que se atribui aos fatos é motivado por outra cena.

Dependente de consumo

Alimentamos a fantasia de que podemos passear, olhar vitrines e de­pois sair do shopping sem consumir. Tem limite. Quando isso acontecer de forma demasiada, os não consu­midores são excluídos. Para legalizar a prática, usa-se o efeito pinça, que é justamente pegar alguns casos iso­lados e generalizar. Lembremos os velhos ditados que embalam o censo comum liberal: “quem é trabalhador se dá bem na vida” (ora, quem não tem sucesso é “culpa” – com toda carga cristã que carrega essa palavra – dele mesmo); ou mesmo conteú­dos bíblicos, entre eles: “nunca vi o justo desamparado nem seus filhos mendigando o pão”. São ditados que funcionam para imobilizar os cida­dãos, deslocando problemas sociais para recair sobre indivíduos que não tiveram bom desempenho econômi­co ou na “fé”.

Por outro lado, o capitalismo pa­rece chegar no seu estágio máximo, o de que as pessoas se sentem cida­dãs consumindo. O debate é antigo. O próprio sujeito é tornado objeto, neste caso objeto de consumo, na medida em que as relações (que são sempre sociais) são eclipsadas (feti­chizadas) pela ação individual com as mercadorias. Assim, se o sujeito passa a ser dependente de consumo para constituir-se enquanto tal (ser aceito pelo outro), deixá-lo em absti­nência pode custar caro à sociedade.

No fim, é como interrogou o nar­rador da obra de Kundera: “O mais nobre dos dramas e o mais trivial dos acontecimentos estariam assim tão próximos? É claro que sim.”

* Publicado no portal Observatório da Imprensa, n. 783: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed783_os_rolezinhos_causam_vertigem_na_midia

* Publicado no portal Observatório da Imprensa, n.783


Conteúdo Patrocinado


Comentários:

Deixe um comentário:

Somente usuários cadastrados podem postar comentários.

Para fazer seu cadastro, clique aqui.

Se você já é cadastrado, faça login para comentar.

ENQUETE

O que você achou do corte do banho e da comida a moradores de rua?



Hoje nas bancas

Confira a capa de hoje
Folheie o jornal aqui ❯


Especiais

Verde-amarelo em disputa e pautas "invertidas" marcam 7/9 antes de julgamento de Bolsonaro

SETE DE SETEMBRO

Verde-amarelo em disputa e pautas "invertidas" marcam 7/9 antes de julgamento de Bolsonaro

Malafaia usa Bíblia para transformar investigação em provação divina

Nos cultos

Malafaia usa Bíblia para transformar investigação em provação divina

Guerra no Congo e o silêncio da comunidade internacional diante de 10 milhões de mortes

CONFLITO INTERNACIONAL

Guerra no Congo e o silêncio da comunidade internacional diante de 10 milhões de mortes

Como lema da esquerda foi pego por bolsonaristas e virou mote no 7 de setembro

Anistia

Como lema da esquerda foi pego por bolsonaristas e virou mote no 7 de setembro

“Bolsonaro ainda é insubstituível”: antropóloga analisa os rumos da extrema direita

EXTREMA DIREITA

“Bolsonaro ainda é insubstituível”: antropóloga analisa os rumos da extrema direita



Colunistas

Pastora Paula carcou processo

JotaCê

Pastora Paula carcou processo

Câncer na infância

Coluna Esplanada

Câncer na infância

TCE/SC intensifica fiscalização de obras

Coluna Acontece SC

TCE/SC intensifica fiscalização de obras

Porquinhos-da-índia na restinga da Praia Brava em Itajaí

Charge do Dia

Porquinhos-da-índia na restinga da Praia Brava em Itajaí

Rolê na Europa

Coluna do Ton

Rolê na Europa




Blogs

🌻 Setembro Amarelo – Mês de Valorização da Vida

Espaço Saúde

🌻 Setembro Amarelo – Mês de Valorização da Vida

Alimentação no setembro amarelo

Blog da Ale Françoise

Alimentação no setembro amarelo

Fashion week aqui

Blog da Jackie

Fashion week aqui

MP pede cabeça de secretário

Blog do JC

MP pede cabeça de secretário



Podcasts

Floração de ipês cria espetáculo pelas ruas

Floração de ipês cria espetáculo pelas ruas

Publicado 11/09/2025 20:06





Jornal Diarinho ©2025 - Todos os direitos reservados.